Sobre Política e Ficção

Sim, cedo ou tarde chegaria essa hora. É preciso falar sobre política, amiguinhos. Esse tema pode ser um campo minado, mas eu não posso fugir a ele por ser recorrente em diversas produções artísticas, incluindo filmes, séries, livros e jogos… e sua presença pode ser facilmente notada no universo das animações japonesas de robôs gigantes: nelas, a política não é apenas um elemento secundário mas sim um elemento central que ajuda a moldar o enredo.

E como Brigada Ligeira Estelar tem como inspiração justamente esse tipo de obra, tal elemento é inevitável. Pessoalmente, eu acredito na fidelidade à proposta acima de tudo. Se eu escrevesse um cenário a respeito de, digamos, crianças nos anos 80 investigando monstros ou alienígenas (como o Tales of the Loop ou o nacional Crianças Enxeridas), dificilmente eu tocaria no assunto. Isso não muda minhas posições — só não seria adequado fazer isso ali.

Mas não foi o caso e, nessas horas, as posições e experiências do criador inevitavelmente influenciam o resultado final. Na faculdade de Jornalismo, aprendi sobre funções de governo, quem faz o quê, o que cobrar de quem. Isso me ajudou na hora de desenvolver o funcionamento do Império. Mas é impossível as ideologias, valores e crenças dos criadores não serem refletidas nas histórias que criam… e, se você não estiver fazendo um panfleto, tudo bem.

Fazer entretenimento NÃO significa que você não pode ser político.
Essa cena de Gundam: The Witch from Mercury não te diz nada?

Em muitos animês do gênero robôs gigantes, a política é um tema central do roteiro. O coração de Brigada Ligeira Estelar gira em torno de uma organização militar mantenedora da paz e ordem em um império espacial. Os personagens enfrentarão outros robôs gigantes? É claro, mas também se depararão com situações políticas complexas, questões de poder, diplomacia e conflitos ideológicos. Esses elementos são fundamentais para a construção da narrativa.

Na verdade, podemos traçar isso até nas duas origens temáticas da space opera: o capa-e-espada e o faroeste. O primeiro, aliás, é um gênero de aventura muito político: os Três Mosqueteiros estão no meio de uma disputa entre o Primeiro Ministro e a Rainha Consorte, cada um com suas prioridades e alianças*. Zorro? Colonialismo e questões agrárias**. Podemos comparar obras de autores com posições opositoras, como Pardaillan e Pimpinela Escarlate***.

A grande maioria das séries Gundam tem algum
subtexto político, bem-executado ou não…

Já o faroeste deve ser encarado como uma mitologia, não um gênero histórico, assim como a fantasia medieval pode ter muito pouco de realmente medieval. Mas se de um lado ele tem um componente ideológico de mitificação da formação estadunidense, do outro ele se ancora justamente em questões agrárias: posses de terra, latifúndios, o uso de jagunços para expulsar ou exterminar populações originais — ou intimidar trabalhadores. Pegou nosso ponto****?

Todos são entretenimento e funcionam como tal. Eles refletem a visão do criador mas não são pregações e nem deveriam ser. No entanto, temas políticos são polarizadores e muitos preferem a descomplicação — para isso, em RPG, existe o mata-monstro na masmorra e não há nada de errado. Contudo, ela pode enriquecer uma obra de várias formas, ajudando a criar personagens mais complexos e realistas e oferecer perspectivas únicas sobre questões difíceis.

…e para o fandom de Zeon: não é óbvia
para cacete
a analogia feita aqui?

Pessoalmente eu acredito que a escolha dos vilões seja o indicador mais visível das posturas de um autor, mesmo em suas obras mais inconsequentes. Quem você vê como ameaça? Nos anos setenta, os Estados Unidos cometiam atrocidades na Guerra do Vietnã e o próprio George Lucas admitiu essa como uma inspiração para seu Guerra nas Estrelas*****. No entanto, ele colocou uniformes cripto-nazistas nos oficiais do Império. Sentiu a mensagem embutida aqui?

Elementos políticos costumam ser usados para questionar o status quo. No entanto, contextos podem influenciar tramas de maneiras mais sutis e insidiosas. Por exemplo, nos animes da franquia Gundam, política é importante e temos subtextos anti-belicistas e pacifistas. Mas, ao mesmo tempo, nós os assistimos porque queremos ver lutas de robôs gigantes e batalhas espaciais! Pessoalmente? Para mim, essa ambiguidade pode ser usada de forma inteligente.

Fang of the Sun Dougram: uma série sobre
anticolonialismo e política concreta.

Outro exemplo de obra com robôs gigantes e bom uso do tema é Fang of the Sun: Dougram. Essa série gira em torno de um levante anti-colonial no espaço e o final é digno de nota quanto ao pragmatismo real da política. Já Combat Mecha Xabungle, por trás de seu aspecto mais divertido e (superficialmente) desmiolado, esconde muita sátira social e um poderoso subtexto de luta de classes. Se formos falar de exemplos no gênero, ficaremos o dia todo aqui.

A política também faz parte do universo de Brigada Ligeira Estelar. As relações de classe e interesses financeiros por trás de decisões políticas não são esquecidos. Antes de alguém perguntar “para quê?”, pensem: todo grande ataque planejado a inocentes atendeu a algum interesse deliberado previamente em um escritório. Os jogadores são frequentemente confrontados com escolhas difíceis e devem avaliar cuidadosamente as consequências de suas ações.

Combat Mecha Xabungle: por trás do clima divertido,
estão embutidos temas sociais muito sérios.

Política pode ser um tema polarizador, mas isso não é motivo para evitá-lo a todo custo. Pelo contrário, é importante dar liberdade aos criadores de obras artísticas para eles se sentirem livres em explorar temas controversos de maneira responsável e consciente. Sim, as visões dos criadores inevitavelmente influenciarão o resultado final, mas é importante reconhecer como essas influências podem tornar um mundo ficcional mais rico e significativo.

E isso é o mais importante no final das contas. Falando por mim, procuro me preocupar se estou produzindo um bom material — nada mais, nada menos. Não me preocupo demais com a mensagem, mesmo se o tema tiver muito peso político (como os acordos dos personagens para montar suas forças, em Belonave Supernova). Qualquer influência nesse sentido surge de um desenvolvimento natural do texto porque a vida é política…

…e eu não pretendo mudar isso. É só.

Sim, falamos de uma série de robôs gigantes.

* Apesar do nome pelo qual ela se tornou conhecida, a rainha Ana da Áustria na verdade era espanhola e foi entregue como esposa a Luiz XIII da França como parte de um acordo de paz, no qual a princesa Isabel de França foi entregue ao rei Felipe IV da Espanha da mesma forma. No entanto, os Habsburgos — o clã austríaco de onde Ana veio — ainda eram inimigos, e por isso ela era vista com desconfiança na corte. Para piorar, ele escolheria o Cardeal Richelieu como conselheiro e ele era francamente anti-Habsburgo. Por outro lado, ela mesma se envolveu em intrigas políticas contra Richelieu (ninguém é santo aqui) e, quando França e Espanha inevitavelmente entraram em guerra, ela continuou se correspondendo em segredo com seu irmão, o rei da Espanha. Para piorar, a Inglaterra apoiava os protestantes franceses nas Guerras Religiosas — então essa aproximação do Duque de Buckingham, primeiro-ministro inglês, com a Rainha, pegou muito mal. Então sim, Os Três Mosqueteiros tem um pano de fundo extremamente político — ao ponto de, na continuação “Vinte Anos Depois”, quando tudo mudou e agora o primeiro-ministro é o cardeal italiano Mazarino (escolhido pela própria rainha quando se tornou regente após a morte de Luiz XIII), um deles se questiona se no passado eles não escolheram o lado errado para lutar — afinal de contas, Richelieu era um crápula inescrupuloso, mas sua prioridade era a França!
** Isso na verdade é bem óbvio: o protagonista Diego de La Vega volta da Europa presumivelmente imbuído de ideais iluministas e se depara com os abusos do colonialismo espanhol em sua própria terra. Não custa lembrar, porém, que o personagem foi criado em 1911 por Johnston McCully, um autor estadunidense, sob a ressaca da guerra deste país contra a Espanha (1898). Não à toa, a Espanha gerou sua própria resposta ao Zorro: El Coyote, de José Mallorqui Figuerola, um vingador mascarado lutando pelos direitos dos hispânicos e contra os abusos da ocupação estadunidense em território Californiano.
*** Em um canto do ringue, Michel Zévaco: anarquista clássico e ativista anti-clerical. Fiquemos com a palavra de seu protagonista na sua série mais famosa, Os Pardaillan — “Não sou um desses barões que se dedicam a roubar mulheres ou crianças; Não sou um desses duques que, armados como cavaleiros para proteger os fracos e intimidar os fortes, rebaixam seu cavalheirismo a ponto de tremer diante dos príncipes e depois procuram lavar sua baixeza no sangue de suas vítimas. Não senhor! Não tenho bosques cujas árvores possa transformar em forcas, nem aldeias onde possa desfilar o orgulho das minhas injustiças, nem castelos a serem esquecidos, nem oficiais de justiça louváveis, nem guardas na ponte levadiça que atravessa ainda com remorsos nas noites de inverno, quando o assobio do vento soa tanto como gemidos ou gritos de vingança. Consequentemente, não sou o que se chama de um grande senhor”. No outro canto do ringue, a Baronesa Emma Magdalena Rozália Mária Jozefa Borbála Orczy de Orci (ou, como é mais conhecida, a Baronesa de Orczy): sua família fugiu de seus domínios na Hungria por conta de um iminente levante camponês. Criou o Pimpinela Escarlate, um nobre britânico especializado em salvar da guilhotina os pobres coitadinhos da nobreza (ironia mode on) e uma espécie de resposta aos heróis de capa-e-espada voltados a proteger camponeses de nobres cruéis. Foi esse personagem quem introduziu na cultura popular o conceito de identidade secreta. Sua opinião sobre o povo revoltoso: “Uma multidão crescente, fervilhante e murmurante de seres que são humanos apenas no nome, pois aos olhos e ouvidos eles não parecem nada além de criaturas selvagens, animadas por paixões vis e pelo desejo de vingança e ódio.” Na verdade, a animalização do oponente é aplicada em cada oportunidade: “Ela pensou nas feras vorazes — em forma humana — que espreitavam suas presas e as destruíam, impiedosamente como qualquer lobo faminto, para a satisfação de seu próprio apetite de ódio.” Acho que isso já diz tudo.
**** Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Na verdade, a partir do final da década de sessenta, esses aspectos mais politizados começaram a ficar mais evidentes no gênero, especialmente com os realizadores italianos.
***** Nas palavras de George Lucas: “Estamos lutando contra o maior império do mundo, e somos apenas um monte de sementes de feno em chapéus de pele de guaxinim que não sabem de nada. A ironia é que, em ambos, os pequenos (N. do R.: na Revolução Estadunidense e na Guerra do Vietnã) venceram. O império altamente técnico — o Império Inglês, o Império Americano — perdeu. Esse era o ponto.” Não por acaso, Lucas (bem antes de Guerra nas Estrelas) tentou fazer um documentário anti-guerra do Vietnã chamado de… Apocalypse Now. O projeto gorou e Francis Ford Coppola pegou o nome para si. O resto é história.

NO TOPO: Legend of the Galactic Heroes: Die Neue These. Em todas as versões, um dos animes mais políticos de todos os tempos.

DISCLAIMER:  Mobile Suit Gundam, Mobile Suit Gundam: Iron Blooded Orphans, Mobile Suit Gundam: The Witch of Mercury, Fang of the Sun: Dougram e Combat Mecha Xabungle pertencem à Bandai Namco Filmworks, Inc.; Legend of the Galactic Heroes: Die Neue These pertence à Yoshiki Tanaka/Legend of the Galactic Heroes Die Neue These Production Committee. Todos os materiais nomeados pertencem aos seus respectivos proprietários intelectuais. Imagens usadas para fins jornalísticos e divulgacionais.

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