O Pedro Henrique Leal é um amigo meu de velha data e por anos, tocou o blog Fortaleza da Nerditude, no qual ele comentava sobre cultura pop e action figures. Vez por outra, eu o citava. No entanto, ele em certo ponto parou de atualizar seu blog e foi cuidar da vida, como todos nós fazemos em algum momento. E como costuma acontecer nessas horas, alguns textos acabam se perdendo. Enquanto isso, este pequeno canto dedicado ao RPG Brigada Ligeira Estelar prosseguiu, seguindo sua vida útil e mandando material quase toda semana para seus leitores (salvo nos finais de ano, quando costumeiramente temos uma pausa).
Um dos textos icônicos do Fortaleza foi “De Robores e de Horrores”, dedicado às ligações entre o horror e o gênero robôs gigantes. Provavelmente eu devo tê-lo linkado por aqui em algum momento, mas enfim… ele desapareceu. E o Brigada seguiu seu rumo por aqui, se tornando mais e mais um blog voltado aos jogadores de RPG e não necessariamente voltado aos interessados pelas sci-fi animadas nipônicas. Algumas vezes recebi puxões válidos de orelha dos leitores, mais desejosos de conteúdo de jogo e menos de material sobre o gênero em si. E me ative a isso.
Porém, recentemente o Pedro Henrique encontrou finalmente as versões iniciais de seu “Robores” e… não viu muito sentido em reativar o velho Fortaleza da Nerditude apenas por um único texto. Então ele me perguntou se haveria problema em publicar esse material no blog de Brigada Ligeira Estelar. Apesar do tom deste canto da internet ser essencialmente diferente, eu não vejo motivo para não fazê-lo… e convenhamos, o timing foi perfeito: neste momento, estou tossindo pelos cantos por causa de uma gripe pesadíssima e produzir conteúdo não é fácil nessas horas.
Ah, sim: o Pedro me deu permissão para mudar o título e revisar o texto. Daí a mudança de nome. Convenhamos, eu entendi a brincadeira, mas “robores” é uma palavra bem esquisita…
Existe um gênero de ficção muito desprezado por leitores de quadrinhos. Um gênero que esteve para o quadrinho japonês como os super-heróis ainda estão para os quadrinhos americanos e que divide com este uma importância simbólica. Falo dos super robôs, o velho gênero dos quadrinhos e desenhos japoneses onde uma máquina gigantesca pilotada por jovens destemidos enfrenta as forças do mal.
Enquanto no ocidente esse é cada vez mais um gênero esquecido (salvo por alguns raros destaques como Tengen Toppa Gurren Lagann e a já não tão mais recente produção do Netflix Knights of Sidonia) e ignorado pela maioria dos leitores, com a exceção de alguns aficionados, no Japão as histórias de gigantes mecânicos (ou não-mecânicos; alguns são estátuas, ciborgues, deuses…) ainda fazem sucesso no Japão, embora cada vez menos. O desconhecimento sobre o gênero no ocidente é tão evidente que a “carta de amor” de Guillermo del Toro aos super robôs, Pacific Rim, foi acusada de plagiar Shin Seiki Evangelion, como se esta tivesse inventado a ideia de robôs gigantes para enfrentar monstros.
Essas duas obras, no entanto, servem como exemplos de uma ligação muito esquecida: a dos super robôs com o horror. Ironicamente considerado como o mais otimista dos dois grandes tipos de histórias de mecha (o outro, real robot, estabelecido em 1979 por Mobile Suit Gundam, tomado primariamente por dramas de guerra, é considerado o mais cínico), o gênero de Super Robôs apresenta uma realidade onde o mundo se vê ameaçado por monstros gigantes, invasores alienígenas e conspirações criminosas. E em parte dessas narrativas, essas coisas são apenas o nível superficial de uma narrativa de horror na qual não há esperança, e nossa única salvação talvez seja nosso maior inimigo.
Pacific Rim é um caso em que o cenário aterrador (no qual a humanidade se encontra sob ameaça constante de monstros cada vez mais fortes) serve para realçar o caráter salvador dos salvadores mecânicos. Já Evangelion pertence à outra vertente (e que, ao contrário do que seus fãs acreditam, não começou com ela): a de séries onde o salvador criado pelo homem é um perigo ainda maior do que os monstros aos quais ele foi feito para combater.
Essa vertente é quase tão antiga quanto as histórias de super robô. Na seminal Mazinger Z, do hiper-produtivo Go Nagai, o robô-título tinha o “potencial para ser um deus ou um demônio”, dependendo de como fosse usado, e a noção de que ele pudesse ser poder demais para as mãos mortais era um tema recorrente. No entanto, Mazinger Z é um dos mais claros exemplos do super robô como um super-herói “grande”. Enquanto a tecnologia por trás dele era uma ameaça em potencial, o centro de Mazinger (e seus sucessores, Great Mazinger e UFO Robo Grendizer) era um grupo de heróis científicos e seu incrível robô como a última linha de defesa contra um império do mal (Doutor Hell, em Mazinger Z; o Império Mykene em Great Mazinger e a Aliança Estelar Vega em Grendizer).
Isso não impediu, no entanto, que Yoshiaki Tabata e Yuuki Yugo fizessem uma releitura “de horror cósmico” de Mazinger Z em Shin Mazinger Zero. Publicado na revista Champion Red de 2009 a 2012, a obra reescreve o universo de Mazinger Z como um loop eterno de morte e recriação centrado em Kouji Kabuto e seu tormento nas mãos de ZERO, a vontade personificada do Mazinger, um autoproclamado deus obcecado em ser o centro de toda a existência, mesmo se para isso a realidade precise ser destruída infinitas vezes. O mangá foi seguido por Shin Mazinger Zero contra o Grande General das Trevas, com ZERO como seu vilão principal (e uma breve participação do Grande General das Trevas. Muito breve).
O aprendiz de Nagai, Ken Ishikawa, foi quem realmente inverteu essa narrativa com seu Getter Robo. Assim como o cientista Juzo Kabuto de Mazinger Z, seu Professor Saotome criou um robô incrível com uma fonte de energia desconhecida. Esse gigante metálico (composto por três caças, Eagle, Jaguar e Bear, pilotados inicialmente pelo violento artista marcial Nagare Ryoma, o genial sociopata Jin Hayato e o afável judoca Tomoe Musashi) é a única linha de defesa da terra contra o império reptilianóide. E é também a maior ameaça para o universo. O conceito por trás de Getter é simples: quando Saotome “deu vida” à sua criação, infundindo-a com a energia cósmica dos misteriosos Raios Getter (a energia da evolução e da vida), o cientista deu para aquela força cósmica o semblante de uma pessoa… e junto com a forma, foi lentamente lhe dando consciência.
Ao longo dos mais de trinta anos de publicação de Getter Robo, os raios getter e seus invólucros se tornaram cada vez mais conscientes. Sua influência torna-se uma obsessão do cientista. O segundo Getter (Getter Robo G) é consumido junto com seu piloto por sua fonte de energia. Forças do futuro parecem dedicadas a destruir o terceiro (Shin Getter Robo) antes que se torne um perigo, e num futuro distante, uma frota movida por raios getter e liderada pelo gigantesco Getter Emperor ameaça destruir toda a vida no universo.
A trama geral de Getter (nunca finalizado, devido a morte do autor em 2006) é simples: Saotome deu consciência para a força por trás da própria vida. Essa força escolheu o Getter e os humanos (ou melhor: a união dos dois) como a vida “certa” e não permitirá que nada impeça essa vida “perfeita” de dominar o universo. É essa decisão que levará o híbrido sáurio-humano Shô Kamui a trair a humanidade em Âh, o último dos mangás “originais” da franquia: Getter irá exterminar o seu povo. O futuro é só dos humanos, a abominação escolheu a humanidade… e irá exterminar os seus.
Getter adiciona uma outra dose, tão demasiadamente humana, ao horror: todos os vilões de Getter Robo são consequência direta de usar os raios getter como fonte de energia. O império reptilianóide retorna a superfície porque a radiação que os impedia diminiui; o conjunto seguinte de vilões, O império dos 100 demônios, surge como resultado de alienígenas no futuro tentarem destruir o Getter antes que ele se torne uma ameaça para todo o universo. Cada novo inimigo, resultado da mera existência da única linha de defesa. Para salvar a humanidade, cria-se um monstro pior que qualquer outro. A melhor tentativa de “finalizar” Getter Robo, a animação Getter Robo Arc, encerra com Nagare Takuma e o monge Baku Yamagishi libertando Kamui para destruir o nascente Getter Robo Ten antes que ele possa se tornar o Emperor e prevenir o futuro no qual “Getter escolheu a humanidade.”
Getter Robo continua a ser o maior representante desse estilo de super robô, mas está longe de ser o único. No já mencionado Evangelion (1996), os Evas clonados do enigmático organismo Adão são a única proteção da humanidade contra os bizarros anjos que a ameaçam, mas também são a chave para o fim do mundo. Em Space Runaway Ideon (1980) o misterioso robô desenterrado por colonizadores no planeta Logo Dau é sua única proteção em uma guerra galáctica e, ao mesmo tempo, é a personificação de uma inteligência cósmica que conduz os dois lados do conflito para sua própria extinção.
O gigantesco Zearth de Bokurano (2003-2009) é a salvação da Terra contra os horrores extra-dimensionais que a atacam, mas cobra um preço elevado por seu uso. A mesma energia que permite que Gurren Lagann (2007) conceda liberdade à humanidade ameaça destruir o universo. Por baixo do verniz de aventura e heroísmo esconde-se um perigo iminente resultante de nossas ações. Não é exagero comparar isso com o horror moralizador da literatura vitoriana e do cinema de horror, onde as vítimas de alguma forma “fazem por merecer”.
Essas histórias refletem um tema comum em horror e ficção científica e que já se faz aparente naquela que é considerada a primeira história de FC: Frankenstein, de Mary Shelley. O temor de que estejamos lidando com forças além do nosso controle, que tenhamos criado (ou usando, em alguns casos) algo ao qual não podemos controlar, e que nossa obsessão, busca por poder ou clamor por salvação possa ser nossa perdição. É um temor não só comum, mas bem compreensível, especialmente nas obras de um povo que testemunhou os horrores da era do átomo em primeira mão.
O discurso dos limites da ciência e os perigos de forças fora do nosso controle é a base dos filmes de Kaiju, e que serviram de base para o gênero dos super robôs. Em Gojira (1954) a única salvação contra o monstro Godzilla é o Destruídor de Oxigênio, uma arma tão terrível que seu criador, Serizawa, se suicida para ela nunca mais venha a ser usada e que, 40 anos mais tarde (em Godzilla versus Destoroyah, de 1995), se torna a origem de um monstro ainda mais terrível.
Essa temática tem seus equivalentes entre os super-heróis. Nela se encaixa o horror pessoal do Hulk, cujo maior inimigo é ele mesmo. Idem para os temores de Tony Stark ao final do arco Guerra das Armaduras (1987-1988) de que sua própria criação o esteja dominando (assunto reaproveitado em várias outras tramas do herói). E não há exemplo cuja gênese esteja tão claramente nesse temor quanto o vilão Ultron, criado para salvar o mundo, e que vira uma das maiores ameaças já enfrentadas (em múltiplas continuidades).
Tadao Nagahama criaria, com seu Voltes V, outra vertente para os super robôs, bebendo das antigas “aventuras ruritânias”. Ao invés de histórias reativas, onde os heróis reagem aos ataques dos vilões, essas aventuras envolvem heróis ativamente lutando contra um vilão ditatorial para reestabelecer a ordem legítima em um mundo corrompido. Mas essa vertente é uma discussão para outra hora.










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