Dissecando o Honorável

Lamento quebrar os sonhos de alguém, mas o Bushido (“caminho do guerreiro”), como o conhecemos na cultura mundial, não passa de uma invenção — não tão diferente do revisionismo do passado perpetrada pelo movimento romântico do século XIX. Sua origem remonta a práticas militares registradas a partir de 1616*, mas a princípio não constituía realmente um código de conduta definido. Na verdade, os samurais cometiam muitos abusos contra a população**.

A ideia de códigos de honra para os samurais é uma construção posterior ao período Sengoku***, quando a necessidade de manter os guerreiros ocupados em tempos de paz se tornou crucial. O Hagakure****, de meados do século XVIII, é visto como fundamental para esses códigos mas na verdade ele foi amplamente esquecido, até ser redescoberto em um Japão militarista no começo do século XX. E nessa mesma época, veio o livro Bushido, de Inazō Nitobe*****.

Publicado em 1900, o livro de Nitobe praticamente disseminou de vez essa versão romantizada da conduta samurai, criando um análogo com a imagem romantizada do cavaleiro medieval, baseada na honra e na lealdade — e ajudando a incutir no povo japonês a ideia de que seu povo era O herdeiro de valores morais superiores. Ele também foi um best-seller internacional no seu tempo, estabelecendo no imaginário mundial a imagem do samurai como a conhecemos.

Uma dica: o Honorável aqui, entre os pilotos, não é o samurai.

“Tá, mas por que estamos falando disso?” Porque esses elementos se tornaram não apenas parte da cultura japonesa, mas influenciaram toda sorte de material posterior. Foi essa a cozinha de tantos personagens com códigos de honra inquebráveis vistos em animes e mangás sem nada a ver com histórias de samurai — incluindo os de ficção científica! E por isso mesmo, vamos dissecar desta vez o combatente letal mas honrado ao qual chamaremos de Honorável.

Personagens assim são guiados por seus códigos de honra. Por um lado, ele preza muito sua integridade e o respeito ao seu dever. Se a sua missão for impedir inocentes de serem feridos, pode ter certeza: ele é capaz de se colocar na frente deles, atraindo para si os ataques inimigos em nome de sua missão. Por outro lado, há um componente de orgulho aqui: ele se recusará a usar táticas “desonrosas” contra adversários, mesmo à custa de sua vida.

“Eu vou levar tudo até o final! É questão de HONRAAAAAA!”

Honoráveis podem ser intransigentes, cabeça-duras e se encontrar nos dois lados de um conflito: eles podem ser tanto os heróis capazes de se sacrificar para salvar a todos, quanto aqueles oponentes capazes de destruir os inimigos de seu inimigo só para garantir a honra de enfrentá-lo no final… algo bem estúpido se pensarmos racionalmente. Ele vive em uma balança entre a coragem e a soberba, e ela pode lhe custar bem caro. Vamos a alguns exemplos.

Se ele agisse com o cérebro, estaríamos livres do Yu Fei pelo resto da série, MAS…

Talvez sua marca maior seja a inflexibilidade. Não importa sua decisão, ele a levará até o fim, mesmo se isso custar sua vida — aceitação da morte, lembram? Honoráveis também podem se ver em um conflito de lealdade entre seus superiores e seus princípios (na verdade, esse costuma ser o gancho para uma eventual mudança de lado do personagem caso ele pertença ao outro lado). Ele pode até ser um vilão, mas tem valores nobres e virtudes morais******!

Viral, de Gurren Lagann: de oponente honrado a aliado importante.

No fundo, temos aqui os princípios samurais atarraxados a diferentes contextos, até por ser algo esperado pelo seu público original. E tudo bem. Embora esses códigos de conduta até possam parecer deslocados à luz da história propriamente dita, sua influência cultural transcendeu fronteiras culturais, moldando personagens em todo tipo de mídia de entretenimento. Faltaria algo na personalidade do gênero robôs gigantes sem a presença desse elemento.

O honorável traz à mesa uma dualidade entre coragem e soberba, integridade e orgulho, enquanto enfrenta dilemas morais e desafios de lealdade em sua busca pelo seu código de honra. Sua inflexibilidade e determinação o tornam tanto um aliado confiável quanto um adversário formidável, enquanto prossegue sua busca por uma morte digna. Podem ter certeza: um honorável não é um personagem fácil de se esquecer, confiem em mim!

Até a próxima. Divirtam-se!

NO TOPO: Graham Aker, de Gundam 00. Um grande weeaboo, ele chega a receber o apelido de Sr. Bushido de seus companheiros, sem perceber que na verdade estão zoando dele e de sua obsessão com o Japão. Mas ele leva isso a sério, chegando a deixar de combater oponentes que “não estejam a altura” — e perseguindo um dos pilotos principais da série, considerando-o este sim, digno de sua ação; Sophie Noelle, de Kuromukuro, outra tremenda weeaboo. Ela protagoniza uma das minhas cenas favoritas a respeito do assunto: quando encontra o co-protagonista, um samurai do passado que acabou viajando pelo tempo, fica perplexa ao ver que ele não sabe nada sobre bushido ou códigos de honra. Simplesmente ele pertence a um tempo anterior a tudo isso! Carta Issue, de Gundam: Iron-Blooded Orphans: ela vive em um mundo de códigos de honra, duelos e lealdades. Infelizmente a vida real veio e passou por cima dela. Milia Falyna, de Superdimensional Fortress Macross. Tudo indica isso: veio de um ambiente marcial, foi derrotada por um oponente, quis vencê-lo, entrando em um desastrado duelo com ele… e acabaram se casando. Feito em nome das risadas, mas está tudo lá! Treize Khushrenada, de Gundam Wing: ele prefere chamar um oponente praticamente vencido para um duelo e ainda combina o próximo! Suzaku Kururugi, de Code Geass: antes da morte de certa personagem, ele pertence à vertente mais cavalheiresca do conceito. Zechs Merquise, de Gundam Wing: ele desarma oponentes considerados inferiores em combate, atirando com precisão de seu robô, enquanto reserva combates diretos apenas para os adversários à altura — e chega a conceder ao inimigo um robô novo só para garantir um combate justo entre os dois! Jeremiah Gottwald, de Code Geass: ele na verdade é leal aos seus antigos senhores, Lelouch e Marianne, acreditando na sua morte. Quando descobre a verdade, muda de lado. Guel Jeturk, de Gundam: The Witch from Mercury, nos foi introduzido como um valentão cretino, mas reparem como ele honra seus compromissos pós-duelo sem questionar e em sua evolução como personagem, mostra ser alguém muito correto quanto aos códigos de honra. Li Xingke, de Code Geass, tem o pacote completo: é leal, honrado e disposto a tudo em nome daquele a quem serve. Anavel Gato, de Gundam 0083: além de não querer perder tempo com oponentes de segunda, mas não se furtar a duelos, ele tem um diferencial importante — o de não ter nenhuma agenda secreta por trás de suas ações. Ele é leal à causa e está arriscando a própria vida por ela. Gilbert G. P. Guilford, de Code Geass, não é tão diferente de Li Xingke, ao seu modo. Ele tem um senhor (a princesa Cornélia), sua lealdade é com ela e sua honra está na obediência. Shinn Asuka, de Gundam Seed Destiny, é um estudo de caso interessante: ele é movido por lealdade e responsabilidade, mas isso não é algo positivo no seu caso. Meio Plato, de Metal Armor Dragonar, é outro que se destaca entre os “Clones de Char” por um detalhe fundamental que muda tudo: assim como Gato, ele acredita em sua causa. Ele não trama contra os seus senhores por trás de tudo. É leal. Richard Lancelot, de Sei Juushi Bismark, é outro com orgulho lá em cima e o desejo de se tornar um cavaleiro andante — é bom lembrar que existe um link entre a imagem do samurai vendida para o mundo e o cavaleiro medieval romantizado do final do século XIX (importante lembrar que isso não se aplica à Saber Rider, a versão ocidentalizada de Bismark. A personalidade de Lancelot foi reescrita para fazer dele o protagonista da série, tornando-o um líder equilibrado. São dois personagens diferentes na prática!). Allen Schezar, de Visions of Escaflowne, novamente aciona o link entre os conceitos. Ele é um cavaleiro (seu robô gigante inclusive remete ao conceito), e se abandona seu posto é por considerar isso seu dever! Hy Shaltat, de Panzer World Galient, entra em outra categoria: a do orgulho ferido pela derrota, precisando vencer o protagonista Jordy para recuperar sua honra pessoal. Viral, de Tengen Toppa Gurren Lagann, é um dos melhores exemplos do conceito, passando de oponente digno à aliado. Desslok de Gamilon (Desslar de Garmillas no original), de Patrulha Estelar! Sim, ele mesmo! Sigam o arco: ele tinha uma boa motivação para fazer o que fez no original, mas na segunda temporada, se tornou o executor de ordens do Cometa Império. Ao perceber que ele estava jogando sua honra e dignidade para o alto ao trabalhar para um bando de carniceiros, ele muda de lado e abandona sua vingança, tornando-se posteriormente aliado dos nossos heróis. Por fim, o Comandante Zeda de Capitão Harlock e a Nave Arcádia. Esse não tem um final feliz, mas é um grande exemplo do adversário análogo, com valores em comum e respeito mútuo pelo inimigo.

* No Kōyō Gunkan, registro de feitos militares do Clã Takeda, destruído ao final do período Sengoku.
** Basta se lembrar de duas práticas:
o Kiri-sute gomen, no qual alguém teria o direito de atacar com sua espada ou mesmo matar alguém de classe inferior, caso este comprometesse de alguma forma sua honra, e o Tsujigiri — a prática de atacar algum passante aleatório à noite apenas para testar alguma arma nova, proibida em 1602 com pena de morte aos responsáveis, após atingir números alarmantes de vítimas. Definitivamente, não são exemplos de retidão moral.
*** Período Sengoku (1467-1615) ou a “Era das Guerras”, marcada por contínuas guerras civis ao longo dos séculos XV e XVI.
**** O Hagakure, do sacerdote zen-budista e ex-samurai Yamamoto Tsunetomo, na verdade buscava uma transcendência ao manter sua mente ligada à percepção e aceitação completa da própria mortalidade. Ele é mais um “Zen e o caminho do guerreiro”, mas teve sua interpretação distorcida e se tornou leitura padrão para os kamikazes na Segunda Grande Guerra.
***** Nitobe era Educador, Diplomata, Engenheiro Agrônomo e Cientista político, chegando a se tornar parlamentar no Japão e secretário-geral adjunto na Liga das Nações (o protótipo do que viria a ser a ONU). Seu Bushido tinha fãs como o presidente estadunidense Theodore Roosevelt, Robert Baden-Powell (o criador do escotismo) e H. G. Wells (escritor de ficção científica, talvez um dos maiores e mais fundamentais de todos os tempos).
****** Meu exemplo favorito não vem de nenhum anime de ficção científica, com ou sem robôs gigantes, mas não resisto a citá-lo: em D’Artagnan e os Três Mosqueteiros, a versão juvenil com cães antropomórficos da obra de Alexandre Dumas, exibida na Rede Manchete em tempos idos, Widmer, capitão da Guarda do Cardeal, propõe envenenar D’Artagnan com a anuência do Cardeal Richelieu. O grande adversário de D’Artagnan, o Conde de Rochefort, se opõe a isso porque “D’Artagnan é um oponente honrado!”. Com isso, Rochefort alerta o protagonista, mas o chama para um duelo final logo a seguir. D’Artagnan vence e lhe oferece gentilmente seu unguento para tratar da ferida em combate. Rochefort aceita e agradece. Quando D’Artagnan está prestes a se tornar um mosqueteiro finalmente, o Cardeal dá como favas contadas sua exclusão quando ela depende da aprovação justamente de Rochefort — e para surpresa geral, é ele quem o aprova para o cargo. Não tem nada mais Honorável do que isso. E sim, eu adorava esse desenho quando moleque.

DISCLAIMER: ah, tem gente demais por aqui. Todos os personagens aqui nomeados pertencem a seus respectivos proprietários intelectuais. Imagens para fins jornalísticos e divulgacionais, ok?

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