Novelando 2: o Poder do Clichê

Cenas do último capítulofalamos da construção do elenco coadjuvante e como ele pode gerar tramas através do cruzamento entre diferentes núcleos. Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas realmente precisamos ter alguma coisa para fazer com essas tramas. E, como esse texto já está enorme, vamos dispensar grandes introduções e continuar diretamente de onde paramos: se há algo em comum entre telenovelas e RPGs, é o fato deles serem obras abertas.

E por obra aberta, significa que temos um ponto de partida e um ponto de chegada. Entre os dois, tudo pode acontecer e o ponto de chegada não vai ser cem por cento como se planejava. Como bons herdeiros da tradição dos folhetins, tanto telenovelas quanto, digamos, mangás podem até um final pensado mais à frente, mas muitas variáveis afetarão seu curso: opinião popular, diretrizes vindas de cima (“isso não pode”), efeitos de eventos externos, etc.

E tanto os autores quanto os mestres de jogo precisam manter o interesse de seus leitores/espectadores/jogadores na história coletivamente contada. Voltando aos folhetins do século dezenove*, algum de vocês que tenha lido Dumas ou Balzac já percebeu o quanto eles são mais ágeis na leitura em comparação com outras obras de seu tempo e quanta coisa acontece na história? Isso tem um motivo: naquela época, os autores eram pagos por linha de capítulo!

Com prazos apertados e ritmo diário, o negócio é ser furtivo.

Como a linha de produção dessas histórias tinha um ritmo intenso, e prazos muito apertados, os autores da época logo desenvolveram uma técnica de frases breves nos diálogos, para adicionarem mais linhas ao seu texto. Mas há mais: o espaço nos rodapés de jornal não era infinito. Eles não poderiam se perder em grandes digressões ou descrições infinitas. A trama geral precisava avançar, caso contrário o leitor se cansaria — e abandonaria o folhetim.

Então cada capítulo de folhetim precisava ser uma máquina de gerar interesse. Daí tantas revelações dramáticas, puxadas de tapete, entrada e saída de personagens e mistérios: é para manter o leitor preso**. A trama se enrola para dentro como se fosse um rocambole… e, não por acaso, o doce tem esse nome justamente por causa de um folhetim***! Isso marcou toda mídia seriada desde então — e, como mencionei semana passada, uma campanha de RPG é isso!

“EI, ELE ESTÁ VIVO!” (Ta-daaaaam!!!)

Mas como gerar interesse? Os folhetinistas tinham a seu favor uma leitura veloz, concentrando descrições no começo para se livrar disso e seguir adiante — carregando nas tintas ao apresentar um personagem, para marcá-lo mentalmente (“Ele tem ombros largos, narinas grandes e vermelhas e bigodes espessos. Lembrava um leão marinho.”). Quando tudo depende da narração, como em texto, na mesa de jogo ou no rádio, criar imagens mentais é necessário****.

É por isso que tantos personagens em novelas são tão… planos. Ao bater o olho, precisamos identificar de cara quem é quem e qual é o seu papel aqui. “Essa é a mocinha, esse é o vilão, esse é o personagem cômico”, etc. Mangás e animes são particularmente eficazes nesse sentido — eles podem ir mais longe com os visuais de um personagem, para fazer deles marcantes. Pensem na Lacus Clyne de Gundam Seed ou então na Euphemia Vi Brittania de Code Geass:

O que elas tem em comum? MUITA COISA.

Batendo o olho nelas e olhando suas primeiras atitudes em cena, uma princesa figurada e uma propriamente dita, não sacamos de cara quem são elas dentro da história*****? Os personagens podem ser até aprofundados depois disso mas são mais “tipos de personagens” e eles são feitos para comunicar ideias imediatamente. Já temos uma imagem preconcebida da personagem logo no primeiro contato. Ao dispensar grandes apresentações, podemos ir logo ao ponto.

Em Belonave Supernova, uma das partes mais divertidas para mim como escritor foi levantar uma série de tipos de personagem. A seção Dissecando”, deste mesmo blog, também traz tipos codificados de coadjuvantes (e, talvez, até de protagonistas) presentes em animes de robôs gigantes, eles mesmos, quantificados e tipificados. E eles são muito úteis, dentro dessa dinâmica novelesca, justamente por esse motivo: antes de mais nada, tipos são conceitos!

Gundam Seed é tão novela que até a vilãzinha sonsa e fingida eles tem.

Clichês não se limitam a personagens — eles também são narrativos, e novamente tem uma função importante de comunicação imediata. O uso excessivo pode banalizá-los, mas utilizando-o como uma ferramenta para um propósito maior, e procurando novas formas de inserir o conceito, os resultados podem até surpreender. Por exemplo, um dos clichês mais clássicos é o da chegada da cavalaria quando parece não haver salvação. Isso é uma reviravolta de trama!

“Ah, mas isso é fácil, é só para impedir os personagens de morrerem em jogo blá blá blá…” — mas e se quem resgatar vocês não for exatamente quem todos prefeririam? Digamos, os personagens enfrentaram piratas espaciais, estavam quase perdendo, mas eles são enxotados por uma grande belonave… e quando vemos, é uma comitiva de nobres tarsianos com seus próprios interesses, com hussardos regenciais tarsianos os acompanhando? Pronto: é outra enrascada!

Da mesma forma, em Code Geass, o clichê de personagem é bem claro…

Por isso o clichê não pode ser desprezado. Ele precisa ser apenas usado com inteligência, seja para não perder tempo, seja para subverter expectativas. Pense no clichê da vilã com cara de santa que engana meio tudo e cria planos mirabolantes para ferrar com os protagonistas. Um bom modo disso funcionar é pensar, digamos, no arquétipo da Princesa. É como se fosse uma versão negativa dela mas para funcionar, ela precisa parecer também uma princesa.

No fim, tudo é feito pensando nessa comunicação, natureza imediata e busca pelo interesse. Manter o alvo ligado e manter o conteúdo acessível, para não entediá-lo. Mas podemos ir mais longe e, aqui, o conceito de obra aberta se torna mais forte. Como trazê-lo para sua mesa de jogo? 

A seguir, cenas do próximo capítulo! Vamos falar sobre como usar tudo isso de forma concreta em jogo! Vamos enfiar nossos robôs na equação!

Até a próxima e divirtam-se!

* Mencionamos isso no artigo anterior, lembram?

** Já fora do tempo dos folhetins, o escritor policial Dashiell Hammett — também ele um autor de massas — dizia que, quando ele não sabia para onde a história deveria ir, ele fazia um ou dois homens armados entrarem porta adentro e levar o protagonista para falar com alguém em algum lugar. O resto se inventa depois, fazendo a cena ter sentido mais tarde. Isso é muito folhetinesco… e cá entre nós, se sua atenção estivesse se perdendo antes disso, agora você estaria de volta aos trilhos, querendo ver para onde isso leva. Isso é gerar interesse!
*** A série Rocambole, de Ponson du Terrail. Hoje ela está ausente do imaginário da cultura pop, mas em seu tempo, ela foi de um sucesso monstruoso — e conseguia ser uma inacreditável máquina de reviravoltas dramáticas.
**** Na Telenovela, a presença dos atores parece dispensar a necessidade dessa apresentação, mas não é bem assim: essa parte agora fica por conta da caracterização do personagem, de você entender qual é a dele logo no primeiro contato. Isso fica por conta da interpretação do ator, dos trajes preparados pelo figurinista, etc.
No Rádio, você ainda tem a voz para complementar o narrador. E no RPG… bem, é tudo na conta do mestre. Boa sorte!
***** Não estou dizendo que elas são a mesma personagem, porque não são. Mas ambas usam o arquétipo da princesa como um esqueleto conceitual e constroem o resto a partir disso, tendo muita coisa em comum. É interessante lembrar que em Code Geass, o ovo de colombo narrativo é a inversão da posição dos personagens principais: Aqui, o protagonista Lelouch é o mascarado com planos mirabolantes e o deuteragonista Suzaku é o piloto idealista que sofre como o cão. Tendo isso em mente, dá para entender que Euphemia é a mocinha que se apaixonaria pelo protagonista padrão em uma série comum de robôs gigantes — e o faz, só que o protagonista padrão virou coadjuvante de luxo.

DISCLAIMER: Gundam Seed e Code Geass pertencem à Bandai Namco Filmworks, Inc.; Violet Evergarden pertence à Kana Akatsuki, Akiko Takase e Kyoto Animation Co., Ltd. Imagens usadas para fins jornalísticos e divulgacionais.

2 comentários

Deixe uma resposta