A princesa é um arquétipo clássico, presente nos contos de fadas, e eles tem um peso simbólico enorme em nossa formação* não importa o quanto a sociedade mude**. Não é de se espantar tantos impérios espaciais na ficção científica: são conceitos de compreensão imediata. Quando apresentamos uma personagem com a frase “essa é a princesa (insira o nome)”, temos um conjunto auto-explicativo na nossa mente e podemos seguir adiante sem mais explicações.
Embora seus exemplares mais comprometidos com ideias e racionalidade fujam a isso, vários cenários de ficção científica buscam essa ressonância*** — são pedras fundamentais do imaginário humano, plantadas ao longo de séculos. E ideias mudam de roupa… mas permanecem vivas: em qualquer novela das oito, temos a filha do riquíssimo mega-empresário, alvo da paixão de um rapaz pobre. Muda a natureza do rei mas, simbolicamente, ela ainda é uma princesa.
Então sua presença na space opera em geral e nos animes de robô gigante em particular faz um sentido enorme. Tais arquétipos vieram por tabela nos temas ruritânios da Trilogia do Romance dos Robôs de Nagahama**** e, novamente por tabela, embarcaram no real robot logo de cara na primeira série Gundam (prestem atenção no arco de Sayla Mass quando sua verdadeira identidade é revelada: o conceito, em contexto narrativo, está todo lá*****). E ficaram.

todo o resto bate: é uma tragédia aristocrática em todos os quesitos.
Com isso, podemos nos dirigir à Constelação do Sabre. Muitos me perguntaram o motivo de fazer do cenário uma monarquia: por um lado, eu quis preservar o fator ruritânio do gênero — e pelo outro, eu senti o arquetípico como algo necessário para evitar sua datação. Ela estaria incompleta sem uma margem para esses conceitos. Mas colhi do czarismo um elemento: certas linhagens manteriam títulos de príncipe e princesa independentemente de sua posição.
E, novamente, isso foi feito por conveniência. Assim, cada grupo de jogo pode ter seus próprios príncipes ou princesas em suas campanhas, mesmo sendo ela a mera filha de um barão em um domínio gelado no meio do nada. O simbólico conta. E talvez por isso seja a hora de investigar quais sejam os padrões de princesas passíveis de aparecer em suas aventuras. Como um coadjuvante importante (normalmente elas o são) ou mesmo como uma das protagonistas.

namorado é um piloto — tudo dentro dos conformes.
Mas para os fins de nosso cenário, quais seriam as melhores opções? Bom, no seu aspecto mais clássico — o da moça feminina, bela, pura e inocente celebrizada nos antigos longas da Disney — as princesas são usadas tanto como donzelas em perigo quanto como interesses amorosos de um personagem e não há nada errado nisso: para nossos fins, ela se presta ao papel de coadjuvante. Na verdade, usado com inteligência, o clichê pode trazer bons resultados.
E aqui nos detemos na Princesa Euphemia li Britânia de Code Geass. Ela cumpre todos os quesitos da princesa clássica, amando a todos e querendo ver todo mundo feliz — mas com um twist: em um cenário no qual uma figura proativa e política poderia fazer diferença, ela é ingênua demais para seu papel e suas boas intenções não vão transformar o mundo******. No final (alerta de spoiler), por conta de um acidente idiota, ela sofrerá um destino trágico.

namorado é um piloto — mas aqui o clichê não joga a seu favor.
Nesse sentido, Euphemia é uma desconstrução. É só compará-la com uma princesa bem mais tradicional do gênero: Lacus Clyne, de Gundam Seed. Mesma idade, mesmo cabelo rosa, pacifista, tem um namorado piloto de super-protótipo pronto para acabar com a guerra™ e, embora seu papel seja menos literal (seu pai é um dos líderes políticos da sua coalizão de colônias rebeldes), ela praticamente gabarita uma cartela de bingo dos clichês… e ainda é uma idol!
A questão é — se como coadjuvantes personagens assim funcionam, alguém realmente quer jogar com elas? Vamos examinar alguns tipos de princesa em jogo:
Princesa Clássica: já falamos delas. Só falta cantar para os bichinhos… e, no caso da citada Lacus Clyne, talvez nem isso. Em geral é uma coadjuvante.
Princesa Política: elas tem o necessário para a arte da política — Asseylum Vers Allusia (Aldnoah Zero) e Marina Ismail (Gundam 00) estão aqui*******.

deu errado, mas intui-se capacidade nesse sentido para uma missão dessas.
Princesa Guerreira: tem características de outras variantes mas mandarão bem com um robô gigante. Exemplos: Cagalli Yula Athha (Gundam Seed) e Allura (Voltron).
Princesa Caída: perdeu posição e entes queridos, podendo se esconder ou buscar vingança, vide Angelise (Cross Ange) e Sara (Soukou no Strain)********.
Princesa-Problema: elas fazem o que bem entendem e dão… muita, muita dor de cabeça a quem está ao redor — vide a mimadíssima Maria Louise de G Gundam.
Princesa Cativa: vieram do lado inimigo mas estão presas entre vocês — vide a Princesa Azalyn de Irresponsible Captain Tylor. Costumam mudar de lado.
Princesa Rebelde: não querem ser princesas e fogem do dever criando falsas identidades, atraindo dores de cabeça — vide Mineva Zabi (Gundam Unicorn).
Princesa Plebeia: ela ignora seu passado, podendo (ou não) ser também uma Princesa Caída. É um alvo e nem sabe a razão, vide Shakti Kareen (V Gundam).

precisa descer do salto alto e se apaixona por um dos mocinhos.
Em geral, o ideal para uma princesa não ficar fora da ação é ser uma guerreira — ela até adquire elementos das demais variantes, mas seu forte é o combate. Em Brigada Ligeira Estelar temos a princesa Maria Victoria Ezquerra de Trastâmara (Arquivos do Sabre, página 69), claramente uma princesa caída, enquanto a nossa velha conhecida Princesa-Regente Adelaide d’Altoughia é uma princesa política. Por quê aquela é uma princesa guerreira e esta não é?
Por uma questão de foco narrativo: sabendo estar com o pescoço em risco graças à quantidade de inimigos feitos em seu caminho, Adelaide é treinada para emergências e pode se valer bem de seu robô gigante pessoal. Mas normalmente seu papel é político e ela se vale de campeões capazes de agir em seu nome caso necessário. Já Victoria é claramente uma comandante de campo — liderando seus cavaleiros para retomar seus domínios tomados pelos proscritos.

é o combate, mas infelizmente ela tem responsabilidades…
As duas são coadjuvantes ideais: ao redor delas, os protagonistas ganham uma missão e um centro moral de algum tipo. Mas e no caso de princesas protagonistas? Bom, uma princesa clássica pode muito bem ter uma vida dupla criando uma falsa identidade na qual possa agir, pilotando seu robô de combate. Quem sabe uma justiceira mascarada, fingindo ser adorável na sua identidade pública? Ou quem sabe ela não finja, fazendo isso tudo apenas pela emoção?
E vejam bem, essas categorias não são estanques. A princesa caída pode ter se encaixado em qualquer uma dessas categorias, tornando-se uma princesa guerreira para retomar suas posses — caso ela não o faça, preferindo reunir um grupo de apoio ao seu redor, ela se presta mais ao papel de coadjuvante. E passarão por diferentes processos de amadurecimento: uma princesa clássica, ao se tornar uma piloto, vai precisar endurecer para sua nova realidade.

para identificar quem é a princesa aqui, cá entre nós).
Uma ideia divertida para uma protagonista princesa, por exemplo: ela é uma fedelha sem noção, fala aos berros e odeia ser contrariada, mas pelas circunstâncias é obrigada a se juntar aos personagens. Rapidamente aprende a pilotar e suaviza em parte seus modos para poder agir como parte de um grupo, mas… o “em parte” é o problema: ela ainda não tem noção, fala aos berros e se ninguém vigiá-la, pode muito bem pintar o hangar de rosa por puro tédio!
É claro, tudo sempre depende de uma boa motivação ou história por trás. A Princesa Shine Hauser de Super Robot Wars: Original Generator é um bom exemplo — ela é uma princesa política mas participa dos combates por ver nisso uma responsabilidade de nobreza. Ela é cavalheiresca e quer proteger ao próprio povo. Não é preciso ir além disso para colocá-la em meio à ação.
No final, o importante sempre é a diversão do jogador.
Até a próxima e divirtam-se.

(e cá entre nós: Gundam Seed era brega para caramba, não?)
* Uma boa recomendação sobre o tema (para os muito, MUITO interessados no assunto), é o já clássico A Psicanálise dos Contos de Fada, do Bruno Bettelheim. Ele explica melhor o papel de garotos com espadas mágicas e princesas como alegorias para o crescimento e desenvolvimento do ser humano.
** Isso é uma observação pessoal minha, mas ninguém pensa realmente em varrer as princesas do mapa com os novos tempos — o foco atual tem sido o de ressignificá-las e pensar em novos conceitos ou tipos de histórias mais adequados para as meninas de hoje. Como arquétipo, elas ainda são importantes.
*** Se pensarmos bem, aqui está a diferença crucial entre um Star Trek e um Star Wars. O primeiro procura apelar à racionalidade e a discussão de ideias — e é interessante notar: Kirk, Spock e McCoy são estruturados como Id, Ego e Superego, funcionando muito bem em conjunto por essa razão. Não sou contra valorizar Uhura, mas ao colocar McCoy no banco de trás do carro em seus dois longa-metragens para dar destaque a ela, J. J. Abrams (o mesmo de A Ascensão Skywalker) comprometeu essa funcionalidade. Já Star Wars se ancora no operático e no emocional, tentando construir uma mitologia, e os personagens precisam do arquetípico para atingir essa ressonância pessoal com os espectadores. E isso não faz de um necessariamente superior ao outro: ambos tem propostas muito válidas e no geral, bem-executadas de acordo com seus conceitos e objetivos.
**** Combattler V, Voltes V e Tosho Daimos. Os dois últimos são os mais importantes para esse aspecto e mesmo sendo séries de super-robô, o real robot não teria sido o mesmo sem sua influência. Em Voltes V, não há uma princesa mas foram trazidas as disputas nobiliárquicas e reviravoltas novelescas características das aventuras ruritânias. A princesa em si só viria em Tosho Daimos — na verdade, ela é a força motriz da trama e o relacionamento dela com o personagem principal até traz consigo um ensaio de desconstrução do gênero (mas sendo justo: se a segurança da Terra estivesse nas mãos de alguém apaixonado por uma mulher do lado inimigo, eu também colocaria esse sujeito sob desconfiança).
***** Alerta de Spoilers: Sayla (na verdade, Artesia) é filha do fundador da República Zion, mas sua família (e aqueles leais a seu pai) são assassinados pelos Zabi, que assumiram o poder e transformaram tudo em uma nação de nazistas no espaço. Mesmo sendo uma república, ela é uma princesa caída em todos os sentidos — a sensação geral é de aristocracias familiares em nada diferentes de clãs de nobreza. O background da Relena Peacecraft de Gundam Wing, se pensarmos bem, é uma versão requentada do conceito — diferenciada por ela ser uma princesa literal, filha do monarca do antigo Reino de Sanc (deixando esses aspectos ruritânios mais evidentes) e por ela ter abraçado a coroa quando a verdade veio à tona, ao invés de querer fugir dela (Sayla tem uma carreira e só quer viver uma vida normal).
****** Em Code Geass, O protagonista Lelouch chegou a admitir sua derrota para a postura reformista de Euphemia, mas fica no ar: alguém consegue enxergá-la realmente subindo ao trono, no final da série, caso tudo não desse tão errado? Seria uma mudança de imagem pública, mas os interesses por trás do Império Britânico iriam sumir porque ela pediu por favor? Nesse sentido, o reformismo dentro das regras (advogado por Euphemia e seu campeão Suzaku) é pouco veladamente apresentado na série como uma forma de desarticular os movimentos efetivamente capazes de transformação. Ah, sim: Nunnally, ao subir ao trono britânico, fecha o arco da princesa caída — e bom, ela já era literalmente uma princesa mesmo…
******* Curiosamente, Marina Ismail é apresentada como tecnicamente qualificada mas não necessariamente eficiente em seu papel, chegando a ser aconselhada em certo ponto a se tornar uma embaixatriz da boa vontade, mais voltada a eventos de caridade e de imagem pública, deixando a parte política para quem saiba lidar com ela.
******** A Sara Werec de Soukou no Strain é um caso particularmente interessante por ser uma princesa não-literal cuja origem foi uma obra cuja moral básica é “toda menina é uma princesa”: a história é uma adaptação bem livre do clássico infanto-juvenil A Princesinha, de Frances Hodgson Burnett, mas com robôs gigantes e trazendo elementos de outras obras da autora como O Jardim Secreto e O Pequeno Lorde (Werec inclusive é um anagrama de Crewe, o sobrenome da personagem original) — e cumpre totalmente o arco da Princesa Caída tentando se pôr de pé.
NO TOPO (vamos ver se vocês identificaram todo mundo): Relena Peacecreft, de Gundam Wing; Angelise de Cross Ange (embora ela encampe seus clichês por um episódio só — depois ela assume o papel de “princesa caída”); Marina Ismail de Gundam 00; Yuuki Soleil de Price of Smiles; Cagalli Yula Athha de Gundam Seed; Lieselotte W. Dorssia de Valvrave the Liberator; Shakti Kareen de V Gundam; Asseylum Vers Allusia de Aldnoah Zero; Berah Ronal de Gundam F91; Erika de Tosho Daimos (discutivelmente a primeira princesa relevante no gênero, ainda na era dos super-robôs — e uma das mais tradicionais em todos os sentidos); Haman Karn de Char’s Deleted Affair (um caso curioso porque ela só é “princesa” na primeira parte do mangá Char’s Deleted Affair, antes da morte de seu pai. A partir daí, ela começa sua escalada para as sombras, mostrando como ela se tornou a dura vilã de Gundam ZZ); Shine Hausen de Super Robot Wars: Original Generation; Lacus Clyne, de Gundam Seed (mais simbolicamente, porque ela não é realmente uma princesa — mas é filha de uma figura importantíssima e para termos práticos, ela cumpre TODOS os quesitos relevantes); Euphemia Li Britannia, de Code Geass; Mineva Lao Zabi, de Gundam Unicorn; Azalyn Goza CLXVIII, de Irresponsible Captain Tylor; Kudelia Aina Bernstein, de Gundam Iron Blooded Orphans (a seu modo, na mesma situação de Lacus — embora ela encampe um espectro diferente de princesa); Abriel Lafiel de Crest of the Stars; Marie Louise de G Gundam (talvez a segunda princesa mais clássica da lista, atrás apenas da Erika de Tosho Daimos); Lashara Earth XXVIII de Tenchi Muyo: War on Geminar.
ARTIGOS ANTERIORES DA SEÇÃO: o Ás Mascarado (AQUI) e o Piloto Acidental (AQUI).
DISCLAIMER: Todos os personagens aqui mencionados ou retratados são pertencentes a seus respectivos proprietários intelectuais. Imagens para fins jornalísticos e divulgacionais (por favor, não me peçam para buscar os estúdios e direitos de copyright de toda essa gente, não dessa vez. As notas de rodapé já estão enormes…).
(agradecimento ao Pedro Henrique Leal por me cantar a bola do tema).
Acho muito legais essas dissecções do gênero, tanto por exporem sutilezas que às vezes só intuímos, quanto pelas referências.
Fico feliz pela apreciação. 🙂 Na verdade, RPG é derivativo mesmo — e bebe de todos os cantos. O que chamamos de clichê muitas vezes só deixa tudo mais rico.