Friamente, é esquisitíssimo constatar a presença da idol como uma tradição no gênero dos robôs gigantes. Eu a traduzo como Celebridade (ou melhor, Celebridade Galáctica) no universo de Brigada Ligeira Estelar (essa foi a saída encontrada pelo RPG Mekton Zeta, inclusive) mas, como tropo, idol é idol — “cantora, modelo e atriz” são pouco para definir o verdadeiro combo midiático representado por cada uma dessas meninas. E aqui… cabe uma explicação.
Surpreendentemente, tudo começou na França* com o filme Cherchez l’idole (em busca do Ídolo), de Michel Boisrond. Ele tinha muitas participações especiais, incluindo gente famosa como Charles Aznavour, Johnny Hallyday** e, quem nos interessa aqui, a cantora Sylvie Vartan — já com vinte anos, mas vendida como uma estrela adolescente à época. Quando o filme passou no Japão, ela explodiu e o hit La plus belle pour aller danser foi um sucesso enorme.
O filme cunhou o termo idol como o conhecemos e os japoneses o abraçaram para definir esse verdadeiro combo de juventude feminina e entretenimento midiático. E não apenas o replicaram como o poliram e turbinaram por mais de quinze anos — tornando-as algo além de simples cantoras: idols cantam, dançam, interpretam, dublam, aparecem na televisão, assobiam e chupam cana ao mesmo tempo. E sendo adolescentes, ainda estudam. Ter uma vida? O que é isso?
Os anos 80 vieram, a televisão se tornou onipresente como nunca e isso, combinado à grande bolha de prosperidade financeira do país à época, gerou a Era Dourada das Idols no Japão. Foi quando veio um cruzamento inusitado de caminhos: ainda em 1982, estreou a hoje clássica série Superdimensional Fortress Macross, concebida por Shōji Kawamori e dirigida por Noboru Ishiguro, seguindo a trilha do Real Robot estabelecida por Mobile Suit Gundam (1979).
Se Gundam trouxe um novo caminho para os robôs gigantes e Taiyō no Kiba Dougram (1981) trouxe de vez a política para o gênero***, Macross estabeleceu a humanização como terceira perna do real robot****. Porém, parte de seu sucesso imenso para o mainstream se deve a uma coadjuvante mimada e de atitudes questionáveis***** — mas, também, certeira nesse contexto: Lynn Minmay. A ponto de virar uma sombra na carreira de sua intérprete Mari Ijima******.
E o conceito se espalhou, começando por Eve Tokimatsuri em Megazone 23*******, passando pelas sequências de Macross e por outras séries — até mesmo Gundam se renderia a elas na subfranquia Gundam Seed. Em Macross especialmente, aonde música se tornou marca registrada, há uma borra entre as imagens das intérpretes e as dos personagens: o grupo pop Walküre******** por exemplo, usa as cores codificadoras das cantoras de Macross Delta, podem reparar.
É curiosa essa associação… porque as idols não aparecem em todas ou quaisquer séries do gênero. Vamos examinar alguns traços desse tipo de personagem?
Apenas Mulheres: podem reparar, ninguém fez uma série de robôs gigantes com uma boy band*********. Idols por tradição são meninas na faixa dos quinze!
Coadjuvante: quando a idol toma espaço da ação e dos pilotos, é sinal de perda de controle no roteiro**********. Há exceção, graças ao surgimento das…
Cantoras de Combate: uma variante mais recente. A música tem efeitos em combate, exigindo a presença delas em campo… e deixando-as participar da ação.
Idols são legais: só a primeirona Lynn Minmay fugiu a essa regra***********. Ninguém quer associar a imagem de uma cantora a um personagem antipático.
Poder do Carisma: nesse sentido elas são como bardos de D&D — podem parar multidões, convencer pessoas e impulsionar personagens lutadores em combate!
É claro, nada está escrito em pedra… mas há exceções, especialmente em histórias mais desconstrutivas************. Por outro lado, a inclusão de idols com capacidades de ação tem prós e contras. O pró é permitir sua participação entre o elenco de personagens centrais. O contra é: você vai conseguir levar a sério uma história com uma sorridente garota de saiote rendado cantando em meio ao tiroteio? Dependendo do tom planejado, é melhor vetar isso!
Falando nisso, como podemos pensar a presença da idol — ou melhor, da Celebridade Galáctica na mesa? Em Brigada Ligeira Estelar, em geral certos clichês tem alguma virada para oferecer alguma diferenciação e tornar o cenário algo além de um apanhado de tropos. Eles estão lá, mas devem contribuir para a personalidade do cenário. E o mais importante nesse caso é: a celebridade pode ser usada pela mídia para mover a população… contra os personagens.
Não é difícil imaginar isso. Basta lembrar de tantos no meio artístico apoiando atos questionáveis na mídia, fazendo cena na televisão contra os alvos preferenciais da emissora, atiçando sua fanbase a participar de manifestações tendenciosas. E talvez a idol nem seja uma mau-caráter — ela é bem jovem e pode não ter ideia da natureza do discurso por ela defendido mas acredita nele por conta da repetição midiática constante e ganha espaço por isso.

o uso político das idols na manipulação de massas.
Claro, caso ela caia em si, ela pode sofrer a retaliação dos mesmos grupos de mídia responsáveis por sua presença constante nas redes e começar a desaparecer, sofrer boicotes e ser esquecida. Resta a ela lutar para restabelecer seu nome, talvez com uma ajuda de seus novos amigos. Essa é uma boa rota para uma coadjuvante recorrente nas aventuras dos personagens, mas… como podemos pensar em uma idol personagem de jogador? Não é difícil, na verdade.
Pense de forma prática: a cantora de uma divisão de entretenimento para as tropas, precisando de escolta militar nas zonas de guerra da frente proscrita? Uma jovem estrela em ascensão se aproximando de uma corte de nobreza graças à sua fama? Talvez uma ex-celebridade rompendo com o passado e se alistando na Brigada? Pense sempre em alguém destinada a ficar bem junta aos protagonistas. Evite deixá-la à parte dos demais!
Até a próxima e divirtam-se!
* É importante lembrar da influência pesada do panorama cultural francês do final dos anos sessenta e começo dos anos setenta na cultura pop japonesa da época. Muitos mangakás do período beberam da inspiração do cinema da Nouvelle Vague, inclusive.
** Não tão conhecido no Brasil mas uma instituição nacional do rock francês. Seu hit mais conhecido por aqui é Noir c’est Noir. E eu não pus asteriscos no Charles Aznavour porque espero que vocês ao menos saibam quem é ele (ou tenham ouvido seu nome em algum lugar), pelo amor de Deus!
*** Embora Dougram não tenha se tornado uma franquia como Gundam ou Macross, apontou para o tratamento posterior de temas políticos no gênero — algo tangenciado na primeira série Gundam. Não me espantaria se o exame das relações entre as guerras e a iniciativa privada feita por Yoshiyuki Tomino em Zeta Gundam (via Anaheim Electronics) fosse já uma reação do autor à obra de Takahashi, inspirada assumidamente no anticolonialista A Batalha de Argel.
**** Os pilares narrativos do gênero. Eles foram a inspiração de uma série de artigos aqui neste blog — AQUI, AQUI, AQUI, AQUI e AQUI.
***** Causa um pouco de choque cultural entender que aquela coisa sem graça entre os dois é um típico namoro nipônico, talvez da época, em estágios iniciais — os dois estavam juntos, sim (há quem se recuse a crer nisso no ocidente), e ela pôs no protagonista um par de chifres (a essa altura não é spoiler nenhum). Mas ninguém esperava o sucesso e o carisma da idol Mari Ijima turbinando a personagem. então…
****** … começou a haver uma espécie de fusão midiática entre as duas. Ijima se tornou a Minmay de carne e osso — é só conferir seus vídeos — e, percebendo-se agarrada à personagem para sempre, ela sairia do Japão posteriormente para livrar-se da interferência da indústria de idols em sua vida, passando a ter uma carreira musical bem mais discreta.
******* Megazone 23 foi produzido por uma equipe egressa do Macross original (como se fosse seu irmão gêmeo malvado) e muita coisa ali soa como uma desconstrução do material pregresso, especialmente no primeiro OVA (Original Video Animation — animações para home video). Lynn Minmay jamais passou pelo teste do sofá.
******** Em Macross Delta, temos um quinteto de “idols de combate” chamado Walküre — cada uma codificada com uma cor para a facilidade de identificação do leitor. As idols dubladoras da série também formam um grupo pop chamado… Walküre e é fácil identificar quem dubla cada personagem só através das cores de seus trajes, podem perceber.
********* Digno de nota: em Macross 7, ao invés de idols, temos uma banda de rock com um líder masculino. Embora ele tenha as mesmas capacidades mentirosas das idols em certos animes — especialmente quando o assunto é parar multidões — a dinâmica aqui é outra.
********** Macross Frontier ainda é um exemplo emblemático disso: Sheryl Nome foi uma personagem criada para morrer, como se fosse um análogo feminino e idol para o veterano Roy Fokker. Bastou chegarem os primeiros estudos da personagem ao estúdio e… “é, agora não podemos matá-la”. Isso deflagrou um processo no qual o roteiro foi sendo progressivamente reescrito para torná-la participante e enfim, vencedora do triângulo amoroso — colocando os pilotos e a trama de ficção científica como mero pano de fundo. Eu credito a criação de “cantoras de combate” em Macross Delta como uma espécie de controle de danos após Frontier.
*********** No longa Superdimensional Fortress Macross: Do You Remember Love?, Lynn Minmay foi pesadamente reescrita — ao ponto de muita gente que não assistiu à série mas viu o longa jamais ter entendido porque a personagem já foi chamada de todas as ofensas possíveis. Aqui, o protagonista Hikaru Ichijo ganha uma injeção de testosterona e o antigo ricardão, Lynn Kaifun, acaba se tornando o corno simbólico aqui. Em uma sacada genial, posteriormente, esse longa foi transformado em um longa de ficção dentro da continuidade iniciada com a série normal. Com isso, essa se torna a versão conhecida por todos desses eventos, com uma Minmay doce e sanitizada, mas a verdade dos fatos nós já conhecemos muito bem…
************ Basta lembrar da Saki Rukino de Valvrave the Liberator, mas a essa altura era não era mais uma idol — na verdade, ela está lá para lembrar como esse meio é um moedor de carne e como coisas horríveis podem acontecer nos bastidores. Megazone 23, embora o ato não envolva uma idol (só uma ambiciosa dançarina de palco), também sinaliza isso em certo ponto.
NO TOPO (vamos ver se você identifica uma a uma): Lynn Minmay, de Macross; Lacus Clyne, de Gundam Seed; Mikumo Guynemer, de Macross Delta (Walküre — praticamente o atual paradigma de “cantoras de combate”); Meer Campbell, a própria cantora cover, de Gundam Seed Destiny; Kaname Buccaneer, de Macross Delta (Walküre); Violet, de Basquash (Team Eclipse, um trio de cantoras pop que cantam enquanto pilotam… robôs gigantes jogadores de basquete. Vocês não viram nada); Makina Nakajima, de Macross Delta (Walküre); Citron, de Basquash (Team Eclipse); Reina Prowler, de Macross Delta (Walküre); Rouge, de Basquash (Team Eclipse); Freyja Wion, de Macross Delta (Walküre); Chieri Sono, de AKB0048 (elas não pilotam robôs gigantes — elas os enfrentam com microfones que se transformam em sabres de luz!); Sheryl Nome, de Macross Frontier; Nagisa Motomiya, de AKB0048 (ao lado de Chieri, ela é a co-protagonista da série); Ranka Rea, de Macross Frontier; Eve Tokimatsuri, de Megazone 23 (a primeira pós-Minmay); Ishtar, de Macross II; Yayoi Takatsuki, de Idolmaster: Xenoglossia (uma versão alternativa da franquia de idols Idolmaster, presente em animações e jogos: aqui, elas são pilotos de robôs gigantes, não idols. Curiosamente, ao contrário das demais, Yayoi permaneceu sendo idol nessa versão do cenário, com um design de personagem relativamente diferente); Sharon Apple, a idol holográfica de Macross Plus; Saki Rukino, a ex-idol de Valvrave the Liberator.
DISCLAIMER: Todos os personagens aqui mencionados ou retratados são pertencentes a seus respectivos proprietários intelectuais. Imagens para fins jornalísticos e divulgacionais (por favor, não me peçam para buscar os estúdios e direitos de copyright de toda essa gente, não de novo. São personagens demais!).
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