Talvez “Namoradinha” não seja um termo tão adequado aqui. Estou usando-o como um guarda-chuva para encaixar amigas de infância e outras figuras aparentemente estancadas na fase zero de uma relação — o “não estamos juntos mas falta só uma declaração e um beijo para começar”. Esse clichê antecede e muito o gênero dos robôs gigantes, sim, mas ele ganhou algumas características muito próprias nesse contexto. E ela pode ser um coadjuvante fundamental.
“Como assim, fundamental? Não quero uma personagem em meu cangote, quero liberdade de ação!” Aqui entra meu mantra nessas horas: O protagonista protagoniza, o antagonista antagoniza e o coadjuvante coadjuva. Isso deveria ser simples. Mas hoje em dia há várias cobranças sobre o papel de um personagem e muita gente se esquece disso: o coadjuvante não é o protagonista. Ele não deveria competir pela ribalta, ele deveria ser só um personagem de apoio.
E, nessa função de apoio, a namoradinha pode realmente brilhar. Ou pelo menos tirar alguns incômodos do caminho de um personagem, deixando-o livre para agir narrativamente. Ou servir de voz narrativa para direcionar seu rumo. Ou para oferecer ganchos de ação (sim, estou efetuando a defesa da garota-vítima aqui). Claro, todo recurso pode se transformar em uma muleta, e isso jamais pode acontecer. Mas namoradinhas podem ser realmente úteis, creiam!
Se repararmos bem, elas estavam presentes nos animes desde os tempos de Dom João e charuto por um motivo simples: em um tempo no qual animações eram realmente voltadas para crianças, era preciso dar alguma coisa para uma menina se agarrar enquanto os meninos da casa assistiam uma série — caso contrário, ela iria preferir algo mais ao gosto dela… e brigar com o irmãozinho pela dedada no canal (na época, não haviam televisões com controles remoto).
Pessoalmente, a namoradinha quintessencial para mim não veio de nenhum anime com robôs gigantes: é a Trixie de Speed Racer*. Ela era chata? Talvez fosse, sim, mas sem ela a série não seria a mesma. Ela era curiosa, atrevida, furtiva, talvez ciumenta e desconfiada demais mas, definitivamente, leal ao herói. Contudo, ela tem limitações quanto à ação e tudo bem: Speed é o protagonista! Ele precisa tirá-la de enrascadas e não há nada errado com isso.

apoio moral. Eles pertencem a outra era dos animes.
Para entrarmos dentro do terreno dos robôs, precisamos falar da Sayaka de Mazinger Z. O machismo presente na série causou incômodo para alguns, sim, mas poucos notaram as razões disso: os personagens são adolescentes mais velhos, já na faixa dos dezesseis aos dezoito anos, mas o comportamento deles não corresponde à sua idade. É um truque de identificação: eles pensam como crianças na faixa dos dez, onze anos — o verdadeiro público alvo da série.
Tendo isso em mente, observem o comportamento de todo mundo (até o dos adultos, quando se dirigem a eles fora do contexto “entre em seu robô”). São brigas físicas entre crianças: elas surgem do nada e depois todos ficam de boa uns com os outros. Agora podemos falar de Sayaka: ela tem razão ao se sentir preterida e colocada em segundo plano com a chegada de Koji, mas é uma criança mimada sim. No entanto, é proativa e quando é preciso, ela está lá.

entre Koji e Sayaka não são caso de lei Maria da Penha!
Apesar de eu ter citado duas namoradinhas ativas, a bem dos fatos, o gênero foi povoado de figuras cuja função maior era servir de mero interesse romântico e apoio moral para o protagonista — e, aparentemente, Yoshiyuki Tomino, pai do real robot, não era tão fã assim das “amigas de infância destinadas a se tornarem namoradas”: essa ideia, onisciente na produção japonesa, já foi muito desmontada por ele desde o primeiro Gundam** (com exceções***).
Mas quais serão as características esperadas de personagens como estes? Vamos observar alguns elementos bem tradicionais nos comandantes desse gênero:
Detetive por Acaso: namoradinhas são perceptivas, curiosas e muito desconfiadas. Elas costumam notar coisas erradas despercebidas pelos protagonistas.
Função Narrativa: existe para cumprir um papel prático, como ambientar protagonistas deslocados… ou até efetuar uma ação transformadora do status quo.

o mundo para o protagonista (e para o espectador)
Garota-Vítima: elas tendem a estar sempre no lugar errado, na hora errada, forçando nossos protagonistas a entrarem em ação para tirá-la de encrencas.
Ombro Amigo: quando o protagonista está sendo psicologicamente afetado, ela é importante para ouvi-lo e ajudá-lo a se recuperar antes do pior ocorrer.
Rom-Com: seu protagonista está cercado de beldades em trajes justos de piloto e sua namoradinha também atrai a sua cota de urubus — mexa-se, parceiro!
Curiosamente, jamais vi uma namoradinha seguir o pacote completo dessas rotinas. Vou separá-la de outro arquétipo (o qual chamarei aqui, provisoriamente de Garota McGuffin****) mas há um abismo entre, por exemplo, a Frau Bow de Gundam***** e a Lynn Minmay de Macross (e, bom dizer, Minmay é clara e descaradamente uma desconstrução******). Mas elas estão dentro desse esquema e, por motivos bem diferentes, o protagonista precisa deixá-las ir*******.

ela era a namoradinha do personagem, MAS…
Podemos pensar de forma prática. Imagine a namoradinha sendo um cabo arquivista da Brigada. Definitivamente não é um trabalho de ação. Mas ao ver, por exemplo, o protagonista pelo qual ela tem um interesse amoroso com problemas, ela é capaz de se mexer, verificar a verdade dos fatos e topar com arquivos classificados aos quais ela não tem verdadeiro acesso. Basta, então, ela convocar os demais protagonistas da mesa — e pronto: ela ajudou a trama.
Mas um uso prático conveniente no futuro BRIGADA LIGEIRA ESTELAR envolve as regras de estresse. Se o personagem estiver acumulando pontos nesse sentido — e criando redutores futuros para suas ações — não tema: uma coadjuvante como este, na falta da ação dos demais protagonistas, pode agir no sentido de reduzir esses pontos, através de influência moral. Porém, se ela for uma Lynn Minmay da vida, pode é adicionar mais pontos de estresse no coitado…

de energia… e o lugar da mocinha não é na pia da cozinha.
Agora, vamos pensar um pouco fora da caixa: é possível uma namoradinha ser uma protagonista ao lado dos demais? Na verdade… é. Nas séries de super-robôs, a Sayaka tinha seu robô (a Afrodite) e depois ganharia um robô melhor. A série Kuromukuro (dublada na Netflix — não é perfeita, mas tem muita coisa legal e eu recomendo) é um caso aberto de co-protagonismo aonde os dois personagens são pilotos e, sem discussão, o protagonista de verdade era ela!
Mas a bem da verdade, a namoradinha se define a partir do outro e embora isso seja plenamente possível, definitivamente não é para qualquer jogador. Ela é definida por fidelidade, lealdade e até marcação (ou pelo menos consciência) de território. É um personagem de apoio, ou ao menos colaborativo, por natureza. Está lá em função de outro personagem. E certas coisas funcionam melhor assim: o coadjuvante coadjuva, certo?
Até a próxima e divirtam-se!

a do tempo de sua avó! Deixe-a partir para a guerra!
* Eu sei — Speed Racer obviamente não é uma série de robôs gigantes. Mas como arquétipo usável na sua mesa de jogo, a Trixie é uma referência perfeita para mestres de jogo, pode ter certeza.
** De modo geral, Tomino costuma puxar o tapete de suas Namoradinhas. Em Zambot 3, a menina em questão acabou virando estatística (mas dando lugar a outra namoradinha no final). Em Gundam, Frau Bow não terminou com Amuro, quebrando a fava contada. Em V Gundam, até se implica um final com o casalzinho da vez junto, mas a impressão geral é que as expectativas de todos ao seu redor o inibem de seguir outro caminho quando, na verdade, ele gostaria de explorar outras possibilidades na vida. Isso adiciona uma camada agridoce extra a um final “feliz”, mas com um travo amargo.
*** Fa Yuiry, de Zeta Gundam e Gundam ZZ, por outro lado, se revela notável e permanece ao lado do protagonista Kamille Bidan até o fim em todas as versões, nas piores circunstâncias: não vou dar spoilers quanto ao final de Zeta Gundam, mas ela zelou por ele até o fim — inclusive na série seguinte e talvez além de seu merecimento.
**** McGuffin é um gancho narrativo existente para movimentar a trama, e sua natureza de nada importa: o importante é seu papel como razão de ser para todos se mexerem. Ronin, de John Frankenheimer, é talvez o melhor exemplo cinematográfico de como ele funciona: o filme foca em vários agentes livres de espionagem lutando uns contra os outros pela posse de uma maleta — é um mata-mata geral. O conteúdo da maleta? Não importa nem para eles, nem para o filme. Dito isso, é fácil entender o conceito de uma “Garota McGuffin”: não é realmente um personagem, é um gancho falante.
***** Frau Bow, do Gundam original, sempre foi o apoio moral do protagonista Amuro Rei mas ele se distanciou de tal forma que ela, já consciente de seu distanciamento das pessoas comuns como Newtype, acaba se inclinando para outro amigo de infância… e só aí cai a ficha para o protagonista Amuro (“Minha doce Frau…”), não sem certo lamento.
****** Já Lynn Minmay, de Superdimensional Fortress Macross, rompeu com o esteio mais fundamental da Namoradinha: ela foi desleal com o personagem — e, deu a entender perto do final da série, não uma única vez e nem com uma única pessoa (“eu sei que andei com outros caras”). No entanto, ela paga muito caro por isso — validando assim, por contra-exemplo, os valores clássicos do arquétipo. Mesmo assim, ela está dentro do espectro da Namoradinha por ter sido, bem, a namoradinha do personagem, mesmo — e por seu papel como gancho narrativo praticamente acidental.
NO TOPO: Frau Bow, de Mobile Suit Gundam; Shoko Sashinami, de Valvrave the Liberator — ela e o protagonista talvez sejam um dos casais mais azarados da animação japonesa, e se pensarmos bem, tudo teria dado certo para os dois não fosse uma questão de… timing; Fa Yuiry, de Mobile Suit Zeta Gundam; Anna Stephanie, de SPT Layzner; Shakti Kareen, de V Gundam (mas, a partir de certo ponto, ela se torna uma Princesa Plebéia na trama); Hare Menjou, de Guilty Crown, que percebe a rival no terreiro e se mexe, ao menos; Elle Viano, de Mobile Suit Gundam Double Zeta (ah, Gundam ZZ está bom) — uma garota mais tomboy em atitude e menos figura doméstica, entrando em ação ao lados do protagonista se preciso for; Amy, de Suisei no Gargantia, cumprindo a função narrativa de ambientar o protagonista alienígena em seu novo mundo e por tabela, fazendo isso pelo espectador; Soshie Heim, de Turn A Gundam, proativa e curiosa, gradualmente avançando para além do papel de namoradinha e se tornando também uma personagem de ação; Miyuki Ayukawa, de Basquash, a amiga de infância que retornou para fazer seu protagonista encarar seu destino; Emily Amonde, de Gundam Age, praticamente uma Frau Bow que agarrou seu Amuro… mas esta pode não ter sido uma boa ideia; Chidori Kaname, de Full Metal Panic — (além de ser também uma Garota McGuffin, ela é um interessante caso de subversão do conceito para fins de comédia: ela é durona e ao invés de se limitar ao apoio moral, coloca o personagem na linha através da laboriosa arte da porrada); Rosary Stone, de Gundam Age, dando prosseguimento a uma linhagem de futuras esposas infelizes na série; Mayuka Nasu, de Buddy Complex, outra personagem funcional a ambientar o protagonista e os espectadores, assim como a Amy de Gargantia; Wendy Hearts, de Gundam Age, a quem se implica esse papel, mas cá entre nós: ela praticamente desaparece na trama; Yukina Shirahane, de Kuromukuro — um caso raro aonde a namoradinha é a protagonista, participando da ação inclusive, embora o co-protagonista masculino seja quem realmente conduza a trama; Noredo Nug, de Gundam: G no Reconguista, seguindo o protagonista por todos os lados (e cá entre nós, ela merecia mais); Ranka Lee, de Macross Frontier (cujo deuteragonismo lhe foi roubado por um character design e ao perder terreno, ela cai no terreno coadjuvante da Namoradinha); Lucille Aisley, de Gundam: G-Unit — mais namoradinha padrão não existe; Lynn Minmay, de Superdimensional Fortress Macross — talvez por ela ter inaugurado um novo tropo, poucos percebem o quanto ela foi criada como uma desconstrução pesada da namoradinha, puxando na verdade o protagonista para baixo.
DISCLAIMER: Todos os personagens aqui nomeados pertencem a seus respectivos proprietários intelectuais. Imagens para fins jornalísticos e divulgacionais (por favor, não me peçam para levantar o copyright de tudo isso em uma tacada só, pelo amor de Deus!)