O Deuteragonista

No vindouro Brigada Ligeira Estelar RPG, decidi adotar nomenclaturas auto-explicativas: os PCs (Player Character) serão chamados de Protagonistas e os NPCs, de Coadjuvantes e Antagonistas. Entretanto, quando fui remexer nesses conceitos, topei com a palavra maldita: Deuteragonista. Não é um papel tão óbvio ou conhecido assim, fora do meio teatral, e de lá para cá — embora eu não tenha tocado no assunto em meu livro — a ideia ficou me assombrando.

O Deuteragonista é menos um coadjuvante e mais um co-protagonista, com uma trama em pessoal a correr em paralelo com a do protagonista. Não precisa ser necessariamente um inimigo, mas lá pelas tantas sua trama vai entrar narrativamente em colisão com a trama principal e vai afetar profundamente o desfecho. Dois bons exemplos de deuteragonistas dentro do gênero de robôs gigantes são Suzaku Kururugi, em Code Geass, e Ranka Rea, de Macross Frontier.

A ideia é ótima em tese — mas bate de frente com a própria natureza do RPG como mídia: os coadjuvantes podem e devem ser bem-desenvolvidos, com suas próprias tramas, mas as estrelas precisam ser os personagens. Sua campanha não precisa de um personagem do mestre avançando sua trama sobre o espaço dos protagonistas. Então fica a pergunta: como aplicar o conceito de Deuteragonismo na trama sem deixar os jogadores apenas olhando o roubo de sua cena?

Spock em Jornada nas Estrelas (2009): sua trajetória corre em paralelo com a de Kirk
o tempo todo, e ambos tem papéis fundamentais para o desfecho da trama.

O Aliado Deuteragonista

J. J. Abrams é uma figura de grandes acertos e erros monstruosos — e encaixo seu primeiro Star Trek na primeira categoria. Conta pontos para isso a estruturação da trama: Kirk é o protagonista, Spock é o deuteragonista. Reparem: suas tramas seguem em paralelo, como se ambos estivessem seguindo sua própria jornada do herói na sua luta por um lugar no mundo. O outro poderia não existir na trajetória de um — e vice-versa. Aí vem o truque do roteiro:

Um ocupa o espaço de obstáculo ao outro na cartela de bingo da jornada do herói.

Para a trama de cada um avançar, é preciso tirar o outro do caminho. Mas eles tem um mesmo alvo: o grande vilão é uma ameaça planetária mas, em termos de arco pessoal do personagem, seu ponto é justiçar os pais mortos. E aí desatam o nó de sua jornada, não tirando um ao outro do caminho mas caminhando juntos — vencendo seu inimigo, salvando a Federação e se graduando.

Kirk é o protagonista e Spock, o deuteragonista. Eles não são aliados durante
grande parte da história, mas essencialmente este é um buddy movie…

Como aplicar essa estrutura em jogo? Bem, o 3D&T nos dá um gancho para isso na vantagem Aliado. De acordo com o livro, ele “é um coadjuvante que você controla, mas o mestre pode às vezes interferir nesse controle — por exemplo, quando acreditar que o Aliado faria ou não faria algo. Seu Aliado ajuda você, mas muitas vezes ele também pode precisar de sua ajuda”. Talvez seja importante pensar o arco de crescimento do seu aliado ao longo da campanha.

Eventualmente seu personagem precisará ajudá-lo nos objetivos dele assim como ele faz quando você precisa de ajuda nos seus. O mestre precisa ter tudo planejado nos bastidores e ir movendo as peças. Os protagonistas participarão da história e a moverão. No entanto, em algum ponto, a trama dele vai ter consequências explosivas e os protagonistas precisarão lidar com elas. Se o aliado se tornar o oponente final, arruma-se outro para tapar o buraco.

É essa amizade de infância a pedra fundamental dos problemas de Lelouch.
Não fosse ela, Zero provavelmente passaria fogo em Suzaku lá pelas tantas.

O Protegido Deuteragonista

Protegido Indefeso também é uma possibilidade interessante para o deuteragonista. Se pensarmos bem, Suzaku é isso: alguém capaz de cuidar de si — mas também parte de um passado idílico ao qual o protagonista Lelouch procura resguardar. Então, Suzaku é um “protegido indefeso” e Lelouch, mais tarde, terá ótimos motivos para se arrepender dessa proteção: ao longo da trama, Suzaku ascende no lado inimigo… e a cada novo contato, ele estará mais forte.

Ranka Lee talvez seja um outro caso interessante nesse sentido: acompanhamos seu crescimento e desenvolvimento, embora ele acabe lhe sendo sonegado graças ao sequestro da série por um character design*. Ela é, em muito, um protegido indefeso de Alto… mas reparem: o gancho para resolução da guerra contra os Vajra vem justamente dela (Macross em geral é sobre entendimento e conciliação — e Ranka se torna a chave da comunicação entre os dois lados).

O que faz de Ranka Lee uma deuteragonista, até certo ponto da história, é seu crescimento
em paralelo com o de Alto Saotome — mas ela não deixa de ser um mcguffin** ambulante.

Ambos são personagens igualmente condutores da trama central, preservados de um modo ou de outra para o desfecho… e seu gancho principal para permanecerem inteiros até lá é o vínculo com o protagonista. Em jogo, um Suzaku é mais difícil de ser preservado: em algum momento, um dos demais personagens poderia acabar com ele. Já uma Ranka correria o risco de se tornar a NPC queridinha do mestre e dar no saco. Ou seja, o mestre precisa ser hábil aqui.

Uma ideia interessante é ter uma campanha planejada e estabelecer as aparições-chave do deuteragonista de antemão — reduzindo sua presença no resto da campanha de formas mais pontuais (ligações telefônica, encontros)… no entanto, durante esse período, podemos acompanhar mesmo em menções o seu crescimento (“não te liguei à toa! Acabei de conseguir aquele cargo! Precisamos comemorar”). É uma forma de sentirmos esse avanço de uma forma não invasiva.

Já pararam para pensar na importância das bobeiras estudantis em Code Geass?
Os laços emocionais ali forjados serão fundamentais quando tudo der errado.

O Deuteragonista ao Nosso Lado

Voltando à Code Geass, é interessante perceber a alternância nesse papel: o Deuteragonista é alguém ao redor do qual a história orbita, avançando a trama com a mesma importância do protagonista — mas de forma rotativa, alguns personagens surgem com esse perfil (no caso, C.C. e Kallen). Nesse caso, podemos ter Tritagonistas (fazendo par com os dois primeiros), Tetragonistas (quando temos mais um ao lado dos outros três) e assim em diante. Caótico?

Na verdade nem tanto. Esses personagens eventualmente co-protagonizam a trama para pontuar algum arco narrativo e frequentemente passam para o banco de trás, permitindo a outros personagens esses holofotes caso eles influenciem realmente a trama principal. Essa pode ser a opção mais trabalhosa… mas também a mais interessante em uma mesa de RPG: se cada jogador é um protagonista, seus colegas são todos deuteragonistas potenciais! Como tratar isso?

Curiosamente, Gundam Wing é um dos raros exemplos desse protagonismo compartilhado… mas isso
só ocorre por eles estarem separados 95% do tempo — e em jogo, isso é uma péssima ideia!***

Em primeiro lugar, vamos começar sua trama de uma forma mais neutra e vaga para agregar o grupo — mas capaz de ser contextualizada no futuro como parte de uma trama (será duro convencer os jogadores de laços mútuos caso tenham sido unidos pelo acaso). Algo com começo, meio e fim dividido em três episódios. Isso dará ao mestre tempo o suficiente para estudar os históricos de personagens… e criar uma trama capaz de uni-las de uma forma ou de outra.

Vamos imaginar nosso time de jogadores e, depois, pensar como a trama principal pode ser unificada — dando importância a cada um deles em algum ponto.

Luiz Soy. Alferes da Brigada Ligeira Estelar. Humano de cabelos azuis. Inarano. Unido sob ordens a esse bando para avalizá-lo contra uma ameaça maior.

Zeno Monforte de Vizela. Humano. Martinense. Herdeiro de domínio, está marcado por ter se recusado a participar de um conluio. Caçado por um duelista.

Sim, a lógica aqui é a do Bando de Cinco mesmo — da esquerda para a direita,
Contraponto, Coração, Ponto, Cérebro e Músculo. É didático. 😀

Baki Karaca. Humano. É de Ottokar mas foi criado em Forte Martim. Cavaleiro regencial leal a Zeno. Grande e forte, vê no seu cargo uma chance na vida.

Eldo Meraz. Esper. É de Villaverde. Bateu de frente contra a nobreza Tarsiana em uma querela política. Se alistou na Brigada para fugir e se proteger.

Lea Guivar: Evo, de Albuquerque. Aventureira tida como heroína. Age por culpa: a riqueza de seus pais veio por traição. Tem ciber-implantes cerebrais.

O mestre pode pedir mais informações sobre os personagens para os jogadores. Por exemplo, Zeno talvez tenha tido um relacionamento breve com uma nobre de outra família ligada ao conluio ao qual ele recusou participar… e então eles atiçaram o noivo da moça, louco para limpar a honra manchada. A traição dos pais de Lea ou o evento que fez dela uma heroína publicamente (e a querela que prejudicou Meraz) também podem estar relacionadas à conspiração.

E vamos ser sinceros: elencos muito grandes e coadjuvantes repletos de dramas — e segredos —
ligados ou não aos personagens centrais são um ingrediente irresistível para o melodrama.

Assim, terminado o arco introdutório de três episódios com uma ameaça comum (um confronto com milícias, por exemplo), podemos trazer uma nova ameaça, falsamente casual mas ligada a essa trama maior. A própria milícia pode ter a ver com isso. Pouco a pouco, pode ficar claro para os personagens: eles foram reunidos para desbaratar o plano e alguns personagens foram agregados ao time para cumprir funções específicas — como o jovem hussardo imperial.

Em algum momento todos poderão ter seu momento de protagonismo nessa trama maior — basta gerenciá-lo e garantir aos jogadores sua participação ao lidar com o problema de seu colega. Isso, de quebra, ajuda a forjar laços de companheirismo entre os membros de um time: todos se unem para resolver os problemas de um e de outro. Essa, no fim, parece ser a possibilidade mais interessante: todos podem ser protagonistas e deuteragonistas em sua campanha.

Cada um com seu passado e motivações, com elementos pontuais envolvendo
os demais por tabela. Sem jamais deixar de funcionar como um time.

Para Encerrar…

Se olharmos bem, eu não estou realmente dando sugestões prontas. Na verdade, estou mais ruminando sobre possibilidades e ideias capazes de funcionar ou não na mesa — o “quem sabe isso pode dar certo”. Deuteragonismo não é um conceito… fácil para as mesas de jogo, embora ele possa estar presente em diferentes histórias. Mas contá-las, ou ter histórias para serem contadas, é parte do grande apelo dos RPGs… ou, pelo menos, é o grande apelo para mim.

Se há algo a ser dito no final, é: no fim, os personagens são as estrelas e, se não é interessante permitir a um jogador brilhar mais em relação aos demais, imagine quando tratamos de um personagem coadjuvante! Mesmo assim, ele pode ser marcante e importante. Ser uma porta para o universo aonde todos estão. Ser lembrado em grandes cenas.

Só não esqueça quem realmente importa. A palavra protagonista existe por um motivo.

Até a próxima, e bons dados.

Ah, sim: lembrem-se sempre — apesar dos pilotos serem fundamentais,
não negligencie em nenhuma hipótese os robôs gigantes! NUNCA! 😀

* Em Macross Frontier, o triângulo original seria Alto, Ranka e Brera. Sheryl Nome teria um papel de mentoria para Ranka similar ao de Roy Fokker para Hikaru (Rick) na série original — e morreria, igualmente. Mas quando os primeiros estudos da personagem vieram… “agora não podemos mais matá-la.” Assim, o triângulo foi redefinido, Brera foi sendo posto para o banco de trás no roteiro e a série se tornou menos sobre pilotos e mais sobre cantoras (prestem atenção na troca de aberturas, de Triangular para Lion. Ela marca o ponto no qual a abordagem da série muda, podem reparar). A partir daí, o deuteragonismo de Ranka é comprometido.
** MacGuffin é um item do enredo existente para mover a trama — um objetivo, objeto ou qualquer coisa a ser perseguida pelos personagens — mas desimportante para a trama geral. Pensem na maleta do filme Ronin, de John Frankenheimer — algo pelo qual os personagens estavam dispostos a matar uns aos outros. Seu conteúdo? Não sabemos e nem eles mesmos se importam.
*** Idem para a série, mas para nossos fins isso é irrelevante.

DISCLAIMER: Star Trek pertence à Paramount, Macross Frontier à Satelight, Gundam Wing e Code Geass à Sunrise, Voltron à Dreamworks e Gen:Lock à Rooster Teeth. Estes e qualquer outro material mencionado estão aqui em caráter meramente ilustrativo, sendo propriedade de seus respectivos donos. Todos os direitos reservados.
NO TOPO: Suzaku Kururugi, de Code Geass. Não poderia ser outro, desta vez.
Agradecimentos ao Leishmaniose e ao Hélio Alcântara do Mundos Colidem por terem me ajudado a desbloquear as ideias para este artigo. 🙂

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