Minha última leitura tem sido “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais — o mesmo autor do clássico “Olga”. Tecnicamente, essa é uma história de espionagem da vida real… e das boas: acompanha agentes secretos cubanos nas organizações anticastristas da Flórida, documentalmente responsáveis por atos de terrorismo em território cubano sob a conveniente leniência do governo estadunidense. A divisão tem até um nome bacana: a Rede Vespa.
Mas a espionagem da vida real tende a ser mais voltada ao suspense e menos à ação. Diferentemente da espionagem pop, da qual já falamos AQUI, os agentes da Vespa tinham uma missão mais burocrática: reunir informações sobre forças anticastristas, dispostas a usar mercenários para alvejar locais repletos de turistas estrangeiros — e, assim, evitar a recuperação econômica da ilha após a queda da União Soviética, facilitando uma eventual reconquista.
Não entendam mal: informações são fundamentais! Mas pensando em termos do cenário em BRIGADA LIGEIRA ESTELAR, ninguém quer perder tempo se esgueirando entre paredes quando falamos de um cenário com robôs gigantes armados até os dentes e grandes naves espaciais! E, como John Le Carré* fazia questão de nos avisar, espionagem pode ser um trabalho bem chato. Mas como falar da espionagem “dura” em um cenário de space opera como o nosso? Não é difícil.

James Bond. Mas você quer mesmo isso em sua mesa de jogo?
De modo geral, você lida com infiltração, vigília, obtenção de informações e sabotagem. E em termos de animações com robôs gigantes, os dois animes a lidar com isso mais claramente são obras bem pouco realistas e distantes entre si, mas elas em seus acertos e erros podem nos ajudar bastante: Gundam Wing e Full Metal Panic. Falei dos dois inclusive em outras ocasiões. Agora vocês devem estar pensando: ele perdeu o juízo, só pode ser. Calma, calma!
Começando por Full Metal Panic: ele se passa em um mundo aonde a guerra fria jamais acabou graças a uma agência secreta independente chamada Mithril, voltada a manter o equilíbrio de forças entre as superpotências e impedir uma eventual destruição mundial (chegamos bem perto disso um punhado de vezes durante a Guerra Fria, na verdade). Mas acompanhamos tudo inicialmente em um nível bem prosaico: infiltrar em uma escola e se aproximar de uma moça.

veio da galera da escuta. Eles são ótimos escadas.
É claro, a série logo pula para o terreno da espionagem pop, mas temos um bom exemplo do trabalho de base aqui: um personagem se infiltra, pede informações para uma equipe de apoio, transmite dados e prossegue no seu trabalho de se aproximar e manter proximidade (sua missão principal é manter a moça viva sem perceber a vigilância ao redor). O humor da série vem da completa incompetência do protagonista para a função. Tudo bem: isso é uma comédia.
Nesse sentido, podemos traçar um paralelo entre Full Metal Panic e a primeira temporada de As Espiãs (She Spies, 2002)**: os personagens criam falsas identidades, precisam se passar por quem não são, eventualmente se envolvem com outras pessoas caso seja importante — e pisam na bola ou passam vergonha. Mas em algum momento tudo vai explodir na cara de todo mundo e, nessas horas, é preciso levar a coisa a sério. No caso de FMP, com robôs gigantes.
É bom lembrar — em FMP temos uma equipe de apoio o tempo todo, sempre na escuta (e parte da comédia vem da diversão deles em ver seu agente pagando mico em doses cavalares). Gundam Wing, por outro lado, é uma aula de como um infiltrado NÃO… DEVE… se comportar! Vejamos: tudo bem os cinco não se conhecerem a princípio mas, mesmo assim, deveria haver alguém coordenando as ações de todo mundo. Com isso, uns podem explodir os outros sem saber de nada.
Para piorar, um infiltrado jamais deveria chamar atenção — e quando as oportunidades de socialização aparecessem, ele deveria agarrá-las em nome de uma fachada de normalidade. Aí, quando uma menina o convida para um baile… Heero Yui, o protagonista, rasga o convite em frente a todo mundo e ameaça matá-la? JURA, CAMPEÃO? Cheirou meia? Bateu com a cabeça quando era criança? Se era para matá-la, não seria melhor fazê-lo sem alarde e limpar o rastro?
Por sorte (e para esse roteiro capenga funcionar), Relena também não é boa da cabeça e passa a seguir esse psicopata***. Vamos seguir outro infiltrado: Trowa Barton. Ao invés de procurar um local discreto, ele se torna atirador de facas em um circo, sendo visto regularmente por centenas de pessoas — usando uma máscara de eficiência questionável, só ocultando a metade lateral de seu rosto. Muito discreto. Mas pelo menos ele tenta manter a fachada.
O contraponto entre essas duas animações é interessante porque um existe para cometer atos de terrorismo (Wing) e o outro existe para combater ameaças assim (FMP). E em ambos os casos caímos em dois termos da espionagem internacional: Black Ops (operações militares secretas, sob cobertura) e Wet Works (operações de espionagem aonde teremos uso de violência — tanto assassinatos quanto altercações armadas). Mas aqui, elas envolverão robôs gigantes.
Como isso pode ser aplicado em BRIGADA LIGEIRA ESTELAR? Escolha sem falta o agregador mais óbvio aqui: o Agente de Inteligência. Ele convocará os personagens para uma missão envolvendo infiltração, é claro, mas como eles tem robôs gigantes, precisariam entrar em ação quando a coisa apertasse. Dificilmente os personagens jogadores pertenceriam às equipes de apoio: quem quer interpretar um sujeito sentado em uma cadeira por horas, sempre na escuta?
Um ou dois oficiais da Brigada (personagens jogadores) poderiam ser convocados para se infiltrarem na nobreza sob a cobertura de um outro nobre (também personagem jogador), devidamente agregado ao time graças a interesses próprios. Ou se infiltrarem em um grupo terrorista como a TIAMAT. Ou em uma entidade oficial mas hostil, como a Guarda Regencial de Tarso, em busca de uma facção interna particularmente perigosa. Tudo é possível e perigoso aqui.
Por outro lado, seu personagem pode ser O infiltrado no grupo de protagonistas: um jovem de algum mundo não necessariamente hostil, mas cooptado, plantado entre os jogadores e informando a seus superiores cada um de seus movimentos. É claro, durante os combates, ele precisará fazer tudo corretamente (com um ou outro eventual ajuste de acordo com a ocasião) para não ser detectado. No entanto, vá se preparando: algum dia a conta fatalmente chegará.
A partir disso temos duas possibilidades: a defecção — e isso envolverá algum arco de redenção (o personagem se tornou amigo dos demais personagens, entregando o jogo e desbaratando a rede) — ou um confronto fatal com seus antigos companheiros. Talvez ele o faça com culpa, talvez ele tenha entes queridos mais importantes para retornar, talvez ele queira trazer consigo uma eventual namorada obtida no processo (e tudo terminará em desastre, claro).
Dito tudo isso, a espionagem sempre esteve presente de uma forma ou de outra no gênero dos robôs gigantes — dentro, ou fora, de suas abordagens mais pop. Ela ajuda a mover os jogos de interesses presentes em uma ambientação como esta. Talvez eu devesse ter me aprofundado melhor nisso mas, como falei lá atrás, estou me focando na lógica de um universo com robôs gigantes. Ninguém quer perder tempo com trocas discretas de envelopes em supermercados.
De resto esse é um desenvolvimento lógico nas aventuras de BRIGADA LIGEIRA ESTELAR. Se falamos de geopolítica (ou melhor, astropolítica), interesses nobiliárquicos, segredos, golpes de estado e outros temas similares, obviamente a espionagem funcionará como uma graxa para as engrenagens condutoras da ação. O mestre de jogo jamais deveria descartar esses temas em sua mesa. Eles serão importantes em algum momento.
Até a próxima e divirtam-se sempre.
* John Le Carré (1931-2020) foi um dos maiores escritores de livros de espionagem em todos os tempos. Ex-agente da MI6, trabalhaou na Alemanha Ocidental inicialmente como Segundo Secretário da embaixada britânica em Bonn e como Cônsul político em Hamburgo. Sua carreira como agente secreto acabou graças ao lendário agente duplo Kim Philby… mas tudo bem: Le Carré (obviamente, esse não é seu verdadeiro nome) se tornou um dos maiores autores de best-sellers do mundo enquanto viveu e pouco se sabe o quanto dali é ficção ou autobiografia. Seus livros venderam milhões, ganharam adaptações cinematográficas e desmitificavam muito sobre o funcionamento da espionagem em si.
** Essa série pegou carona na versão cinematográfica de As Panteras (2000) e acompanhava três ex-presidiárias transformadas em espiãs por um programa federal estadunidense. Nunca teve nada a ver com espionagem “real” — na verdade sempre foi pop sem culpa e extremamente over, assim como sua inspiração óbvia, mas era uma tralha divertidíssima. A segunda temporada, infelizmente, tirou todo o humor (e carisma) das personagens, mexeu no elenco coadjuvante e matou toda a graça da série, transformando-a em uma chatíssima La Femme Nikita de oitava.
*** Eu sempre me perguntei se “matar” não tem conotação sexual no Japão. “Heero, você não vai me matar?” Só isso daria sentido a toda aquela palhaçada — mas também mostraria claramente como Relena não tem um único parafuso firme na cabeça. Aliás, Martian Successor Nadesico tira sarro disso em uma cena gratuita e breve na qual o protagonista ameaça matar a desmiolada capitã Yukina e ela, em sua imaginação… fica excitada. É só olhar com atenção.
DISCLAIMER: The Spy who Came in from Cold (versão cinematográfica) é propriedade da Paramount Pictures Corporation, baseada na obra de John Le Carré; Full Metal Panic! é propriedade da Gonzo K. K., baseada na obra de Shoji Gatoh; New Mobile Report Gundam Wing é propriedade da Sunrise, Inc.; Heavy Object é propriedade da J. C. Staff Co., Ltd., baseada na obra de Kazuma Kamachi; Aquarion Evol é propriedade de Satelight, Inc.; Spy X Family é propriedade de Wit Studio, Inc. e CloverWorks, Inc., baseado na obra de Tatsuya Endo. Imagens para fins divulgacionais e jornalísticos.
Desde o primeiro Gundam havia alguns diálogos sobre essa ou aquela informação dos modelos adversários obtida por espiões. Espionagem industrial é um bom jeito de apontar a espionagem mais burocrática de volta pra ação.
Espionagem é parte integrante do gênero.