Em algum momento na vida, cruzaremos com a vilania. Negar sua existência é normalizá-la. É fácil reconhecê-la: alguém ganha pessoalmente com uma situação, dos interesses financeiros à satisfação do ego, e não importa-se em destruir inocentes no processo. Para piorar, dogmas, tradições e filosofias econômicas podem naturalizá-la para uma sociedade, tornando em algozes úteis suas vítimas. Porém, se a vilania existe, o heroísmo talvez exista também.
Mas qual é o motivo para se falar desse assunto? Sendo direto, um “Coração das Trevas”, mesmo soando maniqueísta ao extremo, é fundamental para qualquer cenário de RPG digno do próprio nome. Algum lugar aonde se encastelam a fonte de vários problemas e não só não adiantaria explodir o lugar como isso faria os responsáveis cruzarem uma linha terrível, tornando-se algo muito pior no processo. Ou seja, um problema muito grave… e sem soluções fáceis.
Assim nasceu o planeta… bom, não vou dizer o nome por um motivo: ele tinha o sobrenome de uma figura tendenciosa de nosso jornalismo e só fui saber da sua existência depois. Preferi alterá-lo para evitar problemas. Além disso, ele soava germânico demais e, como já vimos ao falarmos do planeta Bismarck (um dos primeiros mundos criados para o cenário), talvez fosse a hora de fugir desse clichê. E assim veio Tarso — não, nada a ver com Holy Avenger.
Referências Iniciais
Tarso teve um desenvolvimento simples: desde a Giedi Prime de Duna, “planetas do mal” não faltam na cultura pop (e não é difícil buscar comparativos na vida real. Golpes de estado? Assassinatos políticos?). Eu só precisava ajustar o conceito à proposta de cobrir as abordagens do subgênero real robot e pronto: Tarso é um planeta Cyberpunk. Alta tecnologia, baixo padrão de vida, grandes corporações, federações empresariais tramando coisas medonhas…
Isso permitiu uma abordagem em duas camadas. A primeira tem uma lista imensa de exemplos na ficção científica japonesa — a maioria sem grandes robôs, mas o resto está lá. A franquia Bubblegum Crisis (e seus spin-offs A.D. Police e Parasite Dolls) é um ótimo exemplo, assim como várias animações para home video dos anos 80 e 90 como Angel Cop*, o primeiro Genocyber**, o Oitavo Homem*** e tantas outras. Mas e quanto a referências com robôs gigantes?
De modo geral, apesar do visual colorido, Megazone 23 ainda é emblemático: personagens fora-da-lei, conspirações, inteligências artificiais e, de quebra, uma bela desconstrução de elementos clássicos****. O OVA Seijuki Cyguard adiciona um fator sobrenatural ao pacote mas não é difícil racionalizá-lo em uma campanha mais firmada no lado sci-fi. E embora Patlabor seja pós-cyber, seus três longas — especialmente o segundo — tem algo a oferecer aqui.
Tarso não é desconexo à space opera do cenário: há uma fronteira espacial no cyberpunk — ela só é uma realidade distante. Os aspectos políticos tradicionais do gênero mecha estão lá mas não se iluda: aristocratas à parte, quem apita mesmo são as forças financeiras e elas tramam contra quem possa impedir seus abusos, usando dinheiro e influência para corromper as regras. Não os subestime: a realidade pode ser mais assustadora do que a ficção*****.
Tarso em Jogo
Tirante Forte Martim, Tarso talvez seja o mundo mais trabalhado do cenário até agora. Além de artigos neste blog, há um texto grande na Dragão Brasil 129 sobre sua capital Metropolitana (como parte de uma série de três artigos na revista sobre cyberpunk no cenário) e outros materiais pontuais. Este mundo pede por uma abordagem urbana, conspirações, interesses sujos — e talvez por uma dose a mais de violência para endurecer as almas mais heróicas.
Conspirações Políticas: os maiores planos contra o futuro da Aliança Imperial são tramados ou bancados aqui — e, aqui, tudo e todos jogam contra você.
Contra-Terrorismo de Estado: vocês podem pertencer às forças imperiais — e viverão um verdadeiro cabo de guerra contra os abusos das forças regionais.
Cyberpunk Tradicional: personagens topando qualquer trocado para fazer serviços sujos, corporações conspiradoras, crime, tecnologia e mais pé no chão.
Fora de Controle: a ciência corporativa gera espers destrutivos, máquinas assassinas e monstros da engenharia genética. Prepare-se para o body horror.
A Luta Continua: o Governo Imperial tenta combater a influência tarsiana por meios legais. Mas o povo não pode esperar. É hora de uma rebelião armada!
Space Opera: nessa abordagem, não tem papo: é “planeta do mal” mesmo. Vocês são defensores do Legado de Falconeri e precisam deter os planos de Tarso!
É claro, nenhuma dessas abordagens será fácil para os personagens jogadores. Um traço fundamental de Tarso é sua sociologia particular: sua população foi criada sob um discurso massacrado pela mídia e pelas tradições. A maioria das pessoas tende a se enquadrar nele e todo protagonista disposto a remar contra essa maré vai se deparar com a oposição daqueles a quem ele busca salvar. Aqui, a vítima também pode ser algoz… e esse é seu maior problema.
É fácil vilanizar uma pessoa comum quando ela defende posturas horríveis, especialmente quando ela passa da linha (atacando pessoas na rua, por exemplo). Mas e quanto a pessoas aparentemente boas, capazes de gestos altruístas, quando uma frase ou atitude reveladora nos mostra o quanto esse pensamento está instalado em sua cabeça? Isso faz de todo Tarsiano um monstro? Como conscientizar essas pessoas? Pensando bem, elas querem ser conscientizadas?
Isso torna protagonistas tarsianos potencialmente interessantes. Mesmo estando do lado de cá, mesmo enxergando tudo sob outro ponto de vista, ainda existe o peso de sua formação jogando contra eles. A crença em uma suposta excelência aplicada sob si mesmo, o paternalismo como uma forma de purgar antigos preconceitos, uma dificuldade de enxergar os outros como tão ou mais capazes… se prepare para os inevitáveis conflitos pessoais. Isso será ótimo.
Para Terminar
É bom lembrar: boa parte dos problemas associados a Tarso não são exclusividade sua. Trianon e Albach não são mundos exatamente amigáveis, se pensarmos bem, e cada planeta tem suas fontes de dor de cabeça nesse sentido. Nele, porém, seus traços são mais acentuados por uma combinação de força industrial e financeira, discurso de excelência (não necessariamente correspondente à realidade) e capacidade de interferir não-abertamente em outros mundos.
Então a antipatia contra Tarso é compreensível. Porém, mesmo negando isso, seu povo faz parte da Aliança Imperial e precisa ser visto como parte de um todo a ser protegido. A luta de classes é uma constante em todos os mundos — e os problemas da Constelação não vão desaparecer caso se jogue um asteroide gigante na superfície desse planeta!
Mas a evolução de uma sociedade depende de vigilância e manutenção. E esse trabalho é de vocês.
Até a próxima.
* Angel Cop é uma série para vídeo (OVA) de 1989, cujas características cyberpunk se mostram ao longo da trama. Sua premissa é estúpida, o conteúdo é ridiculamente reacionário, os protagonistas são na maioria uns FDP (destaque para a cena do interrogatório) e a violência gráfica é completamente gratuita… mas, diacho, ele é divertidíssimo. Me processem por isso. 😀
** Genocyber: para quem o assistiu nos tempos do bloco U.S. Mangá da saudosa Rede Manchete, ele dispensa apresentações. No caso, recomendo apenas o primeiro episódio porque, a partir do segundo capítulo ele deixa sua ambientação urbana (qualquer palavra além dessa seria um tremendo spoiler). Aviso: não é para qualquer estômago.
*** O Oitavo Homem em questão não é bem um remake da série original exibida no Brasil nos tempos da televisão em preto e branco, mas um herdeiro do personagem — que ganha uma abordagem mais parecida com o filme Robocop e claro, é ambientado em um futuro parecido com o do filme Blade Runner (porque um anime japonês sem citação visual à Blade Runner não é digno de ser chamado um anime cyberpunk).
**** Megazone 23 é uma espécie de irmão gêmeo malvado de Macross com sexo, ultraviolência e desconstrução. Ah, a candidata a celebridade se sujeita a um teste do sofá.
***** Eu não queria meter publicamente a vida real no meio e, para não me ver inclinado a jogar vocês, leitores, para a seara dos documentários, recomendo procurar o artigo sobre Metropolitana na DB 129, aonde detalho a FEMTAR — a Federação dos Empresários de Tarso.
DISCLAIMER: todas as imagens são pertencentes a seus respectivos proprietários intelectuais e estão aqui em caráter de divulgação.
É, não tem como inventar algo mais pesado que a realidade…
As matérias de BLE na DB eram ótimas. Sinto muita falta delas na revista.
Só a lua de Tarso é 100% artificial, né? Há áreas naturais no planeta (por mais depredadas que devam estar).
Há sim. Originalmente eu pensei em Tarso como uma ecumenópole (como a Trantor do Asimov ou a Coruscant de Guerra nas Estrelas), mas percebi logo como esse planeta seria insuportável para a vida humana. Achei melhor baixar um pouco a bola em nome da plausibilidade.
São Paulo + Estados Unidos + Cyberpunk = Tarso.
Ninguém me convencerá do contrário.