Aqui vou precisar abrir o jogo quanto a um conceito narrativo do futuro suplemento Navegantes do Espaço: essencialmente, a humanidade se espalhou pelo cosmos e criou muitas variantes humanas através da engenharia genética. Essas novas subespécies humanas são conhecidos como Divergências e os Evos, na verdade, foram só a primeira delas, presentes em muitos mundos, não apenas na Constelação do Sabre. Pronto, fim do spoiler. Eis nossos “alienígenas”.
Esse é o único spoiler ao qual estou disposto a dar — e há um motivo importante para ser feito: enquanto a cultura estadunidense é baseada na auto-definição através da desumanização do outro (falei um pouco disso AQUI), a cultura japonesa se baseia na identificação com o oponente. Ele é uma meta comportamental a ser alcançada para poder ser vencida. Um ser humano não merece ser seu inimigo/adversário/rival juramentado caso não tenha seu respeito.
A maior parte do espaço será povoada por humanos mas também teremos outros divergentes. Isso explica o porquê dos “alienígenas” serem tão parecidos conosco e até eventualmente se misturar com os humanos, gerando mestiços com algumas características suas. É algo parecido com os mundos de Jornada nas Estrelas (eles são assim por motivos econômicos — basta botar um elemento esquisito de maquiagem e temos um alienígena nessas séries. Podem conferir).
E é difícil para nós, seres humanos, encontrar respeito ou empatia por criaturas muito alienígenas. Os seres-monstruosos da ficção científica pulp estadunidense foram feitos para serem vistos como ameaça*; os da animação japonesa podem ter até um detalhe para enfatizar sua natureza “de fora” (cor de pele exótica, asas, chifres) mas de resto são tão humanos quanto nós — e, não por acaso, um tema recorrente do gênero, nos animes, é a conciliação**.
Como isso poderá funcionar na mesa de jogo, é com vocês. E também não vou dizer como vocês devem tocar sua campanha. Mas se os proscritos estão aí para subverter esse conceito e com bons motivos, podem acreditar — eu finalmente os revelarei no Navegantes do Espaço — essa… humanidade do outro lado é importante e está nos fundamentos do gênero, vide Macross e Gundam***. Dito isto, podemos seguir em frente e pensar de uma forma mais prática na mesa.
COMO É O MUNDO? O primeiro passo é encontrar planetas — lembre-se da existência de uma Zona Habitável**** em cada sistema solar. Feito isso, pense: é um mundo perfeitamente adequado para nós humanos apesar de suas particularidades próprias (como em Inara*****), ele tem características próprias com as quais aprendemos a lidar (como em Moretz******) ou exigiu mudanças artificiais de nossa parte (como em Tarso*******)?
Dito isso, quais seriam tais particularidades? Talvez o mundo tenha passado por um supervulcão em algum ponto, deixando a humanidade em um inverno de séculos. Talvez ele tenha um ciclo de dia e noite muito diferente do nosso… ou nem tão diferente, como no caso do planeta Annelise********. Talvez ele tenha uma flora alienígena. O importante é estabelecer algum diferencial para seu planeta — e mostrar como ele afeta a vida de quem queira habitá-lo.
De qualquer forma, é preciso estabelecer um recorte — ou seja, aquilo a ser explorado ou não pelos seus protagonistas durante o jogo. Não caia na armadilha do “planeta de característica única” (um dos motivos pelo qual Brigada Ligeira Estelar tem seu império circunscrito a um número limitado de mundos, mas as possibilidades de povoamento em outros lugares na constelação seja virtualmente infinita) mas também queira explorar tudo numa aventura só.
Pedrinho vai mestrar uma campanha além da Constelação: os personagens irão ser tripulantes de um Cruzador Espacial Imperial. Como não há ainda um cânon para aventuras como esta, tudo será de criação sua. Ele decide começar por um planeta mais alienígena, orbitando uma anã vermelha e com vegetação negra*********. É um mundo um pouco mais frio, mas não coberto de neve por todos os cantos ou algo assim, tem oceanos e seus continentes são habitáveis.
COMO SÃO SEUS HABITANTES? A primeira coisa a ter em mente é como o ambiente moldou sua experiência. Provavelmente os vegetais humanos como os conhecemos desapareceram ou foram geneticamente modificados para variedades muito próprias deste mundo. Talvez os humanos estejam habituados a luminosidades mais baixas — e eventuais raças divergentes sejam mais vulneráveis a flashes luminosos, apesar de suas habilidades como espécie: eles tem uma vantagem.
Quem sabe o crescimento e a adaptação desta raça divergente tenha lhes permitido se espalhar melhor por esse mundo e, eventualmente, subjugar os humanos, fazendo-os fugir do planeta e deixando apenas povoamentos isolados, com tecnologia limitada, sofrendo violências raciais. A chegada da Brigada traz um novo paradigma para essa gente: eles não mais estão sozinhos no universo. Mas nossos personagens buscam aliados na guerra contra os proscritos e…
… a coisa complica, porque eles certamente veem uma nave repleta de humanos como um perigo para a própria espécie caso tenhamos solidariedade com os humanos segregados! Isso nos leva a pensar em sua tecnologia: caso seja superior à da Aliança Imperial do Sabre, eles podem querer atacá-los em algum momento. Caso seja inferior, eles talvez queiram iludi-los e encontrar uma forma de fazê-los partir sem irritá-los. Assim a trama se escreve por si só:
Pedrinho faz os personagens entrarem em um dilema: eles precisam de aliados para criar uma frente interestelar contra os proscritos mas descobrem um mundo governado por divergentes não lá muito amigáveis, aonde há uma minoria humana sob perseguição. Eles devem deixar tudo como está? Interferir a favor dos humanos, possivelmente iniciando uma frente desnecessária de combate? Para precipitar a ação, ele decide pela chegada dos invasores proscritos.
CUIDANDO DOS DETALHES: Agora ele precisa apenas fazer ajustes. Primeiro, definir de vez como serão os nossos Divergentes: a partir do conceito de um mundo sob a luz de uma estrela-anã vermelha, ele decide descrevê-los com pele literalmente negra como carvão, sendo fisicamente mais resistentes e adaptados ao planeta… leiam a nota de pé de página, por favor**********. Por fim, ele precisará definir seu elenco e o sistema de governo pesa muito aqui.
Ele opta por algo equivalente a uma monarquia parlamentarista, com um rei e um conselho de chefes. Então ele decide fazer a princesa, não necessariamente um príncipe herdeiro, ser uma aliada dos personagens pelo destino dos humanos neste mundo. A partir daí, tudo fica nas mãos dos protagonistas. É uma rota atípica em relação a sua campanha usual na Constelação do Sabre mas, agora, vocês estão percorrendo caminhos próprios. Como será sua aventura?
Os jogadores, na campanha de Pedrinho, são pilotos da Brigada Ligeira Estelar. Tudo começa com a detecção de forças de reconhecimento proscritas e isso os leva a um mundo com um nível tecnológico inferior ao da Constelação: eles tem alta tecnologia mas não a ponto de colonizar seu sistema solar ou de combater esse inimigo. A Brigada expulsa os invasores mas todos são contatados pelos governantes desse mundo, muito relutantes em aceitar sua ajuda.
É quando uma princesa deste mundo os chama secretamente para revelar a verdade sobre os humanos ainda presentes no planeta. Enquanto isso, a derrota das forças de reconhecimento inimigas traz uma nave-mãe proscrita e forças o suficiente para causar um estrago monstruoso. Deve a Brigada, agora com seu galeão, interferir? Como resolver a questão?
Certamente essa é uma abordagem diferente das campanhas costumeiras no Sabre, com um cânon muito mínimo.
Para encerrarmos: sim, eu tenho uma ideia mais clara dos oponentes além da Constelação — mas isso fica para o futuro bem distante. Novamente, não quero diminuir o peso da intriga política entre os mundos conhecidos com eventos de escala maior capazes de fazê-los insignificantes em comparação. Essa é uma forma de permitir aos jogadores, até mesmo no 3D&T Alpha, inserirem jornadas espaciais clássicas — como as de Patrulha Estelar — na mesa de jogo.
É uma abordagem mais livre. Exige mais do mestre. Ele não contará com a infra-estrutura narrativa de uma ambientação pronta a seu favor. Mas talvez seja o último toque para completarmos uma velha ambição do cenário: abrigar toda e qualquer ficção científica presente na animação japonesa. Agora vocês poderão povoar não apenas vários mundos mas, também, um universo inteiro nesse sentido. Usem esse recurso com sabedoria.
Até a próxima — e bons dados.
* Como os Medusae de A Legião do Espaço, obra de Jack Williamson — assumidamente, uma das influências não-nipônicas de Brigada Ligeira Estelar. Eles são “medusas” voadoras com o tamanho de um elefante, quatro olhos, centenas de tentáculos, incapazes de nos ouvir ou falar (mas se comunicam entre si emitindo ondas de rádio)… e claro, são completamente perversas e hostis. Obviamente a Legião se tornou uma influência para o Brigada por outros motivos.
** Muitas vezes nos animes e mangás, após um confronto de larga escala, a paz surge através de uma conciliação extrema, fundindo os diferentes lados em um só, gerando um novo status quo aonde todos são iguais, ninguém mais será o mesmo e cabe a nós aprender a lidar com isso. Não é ruim, não é necessariamente uma tragédia, é só uma questão de aceitar e lidar com o diferente. Há vários paradigmas do conceito (como o Lady Devilman de Go Nagai ou o Parasyte de Hitoshi Iwaaki) mas, para ficarmos dentro de nosso terreiro temático, basta mencionar o clássico Superdimensional Fortress Macross: no começo, somos pegos no fogo cruzado entre os Zentradi e as “Forças de Reconhecimento” — na verdade, uma ruptura do mesmo povo, em confronto ao longo de todo um milênio. Os Zentradi nos tem como inimigos e entramos em guerra com eles, perdendo noventa da humanidade no processo. Temos todos os motivos para odiá-los. Mas no final, os Zentradi se juntam à nós (isso exige uma capacidade imensa de perdão da nossa parte), as forças de reconhecimento são debeladas e uma nova civilização nasce, tendo como marco simbólico o casamento e a posterior criança entre o terrestre Max e a alienígena Miria. Outro exemplo claro é A Lenda dos Heróis Galácticos: A Aliança dos Planetas Livres é vencida, mas o Império Galáctico como o conhecemos também chega ao fim com a morte do seu imperador — e com a fusão dos dois lados surge o Novo Império Galáctico, deixando para trás a antiga ordem e trazendo uma nova constituição, transformando-se em uma Monarquia Constitucional Parlamentarista, como nas monarquias europeias de hoje (o Reich do velho Império Galáctico é muito “Antigo Regime” em todo o seu horror…).
*** Macross e Gundam lidam com o conceito de formas diferentes. O primeiro o abraça de forma menos metafórica, mais clara e literal: toda série de Macross gira de alguma forma ao redor da ideia de conflito, perdão — necessário quando tanta gente morre dos dois lados — e conciliação. Pessoalmente acho Macross Frontier uma das piores obras da franquia, mas ele subverte isso ao fazer dos inimigos uma raça de insetos espaciais: quando os alienígenas não passam de humanos como nós, mas com um traço diferente, isso é moleza… como podemos nos comunicar e encontrar empatia mútua com seres tão diferentes e distantes de nós? Há lugar para isso nessas condições? Os Newtypes de Gundam, por sua vez, fazem isso de forma mais alegórica: suas mentes tocam umas às outras. E quando isso acontece, encerram-se os desentendimentos, surge a compreensão mútua… e o fato deles estarem em conflito mútuo revela-se como realmente é — uma tragédia.
**** Zona Habitável é um conceito muito importante: se trata da área intermediária em um sistema solar, no qual a água — fundamental para a existência de vida — pode existir em forma líquida sob temperatura natural. Perto demais de uma estrela, a água evapora e longe demais dela, a água congela. Isso não é o suficiente para a existência de vida, claro, mas é obrigatório. Salvo no caso de colonização espacial muito avançada, os mundos habitados estarão lá.
***** Inara, na Constelação do Sabre, é um planeta perfeitamente habitável pelos humanos e não exigiu realmente grande terraformação — fizemos mais mudanças ao trazer vegetação e animais de origem terrestre ao lugar. Tudo bem, é um planeta composto por inúmeras ilhas, sem uma formação continental muito grande, e é povoado de monstros gigantes a serem enfrentados. Mas fora isso… mais detalhes sobre Inara AQUI.
****** Moretz, na Constelação do Sabre, é um planeta teoricamente habitável pelos humanos não fosse um detalhe: seus fungos são tóxicos para nós e, salvo em pontos oceânicos mais distantes dos continentes mais próximos, são capazes de nos adoecer e até matar. Por isso, os humanos são obrigados em viver em cidades fechadas por domos, ou em montanhas muito altas (com certas restrições), ou em plataformas flutuantes. Mais detalhes sobre Moretz AQUI.
******* Tarso, na Constelação do Sabre, é um planeta plenamente habitável pelos humanos — mas isso só ocorreu após um pesado trabalho de terraformação. Em um ponto invejável da Zona Habitável de seu sistema, lhe faltava uma lua para estabilizar seu eixo gravitacional, submetendo sua superfícies a variações breves e intensas demais de clima e temperatura, impedindo qualquer perspectiva de evolução das espécies. Por isso, em um momento perdido da história, foi construída uma lua artificial até hoje presente, Hegemonia. Mais detalhes sobre Tarso AQUI.
******** Annelise, na Constelação do Sabre, é um dos melhores planetas da Constelação em termos de habitabilidade — e talvez por isso, com a chegada dos humanos, a fauna e flora terrestre trazidas por eles tenham praticamente varrido os biomas anteriores, salvo por algumas áreas específicas. Como particularidade, eles tem um ciclo de rotação de 25 horas, diferente do ciclo Terrestre. Mais detalhes sobre Annelise AQUI.
********* Em torno de estrelas mais frias, como anãs vermelhas, os planetas recebem menos luz visível — logo, as plantas podem tentar absorver o máximo possível dela, evoluindo-as para uma cor enegrecida. Um ótimo artigo sobre o assunto está AQUI, na Scientific American estadunidense (em inglês). Recomendo a leitura para os interessados.
********** Antes de mais nada, estou me eximindo de QUALQUER CONOTAÇÃO RACIAL AQUI: minha ideia veio diretamente do ótimo A Guerra do Velho, de John Scalzi, aonde os humanos ganham corpos adaptados para o combate em outros planetas. Os novos corpos contém clorofila e por isso, as peles dos soldados passam a ser verdes. Por esse raciocínio, os divergentes de uma estrela-anã vermelha seriam literalmente negros, ou pelo menos teriam uma pele de um cinza muito, muito escuro. Talvez o ideal seja fugir do maniqueísmo: os protagonistas, por exemplo, poderiam ter aliados entre esses divergentes para a causa dos humanos. Como opção, para evitar associações negativas, eles poderiam orbitar uma estrela branco-amarelada (diferente de uma estrela amarela como o Sol) e no lugar do verde, ter uma pele azul não muito diferente dos Garmillas (Gamilons, no ocidente) de Patrulha Estelar. O artigo da Scientific American, mencionado na nona nota de pé de página, explica as razões técnicas disso.
NO TOPO: Garmillas (no ocidente, Gamilon), de Patrulha Estelar.
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E lembrem-se da nossa pesquisa! Você concorrerá a um blu-ray importado com uma série famosa de mecha para sua coleção!
Muito bom. Legal ver o cenário se expandindo, se bem que, se estão procurando ajuda tão longe, é porque as coisas em casa não estão fáceis…
De certa forma me lembrou do livro All Tomorrows, mas a vibe de lá não poderia ser mais distante (as alterações genéticas são feitas pelos vilões, com resultados aterradores).
Quando vocês souberem o que realmente os proscritos são, entenderão essa decisão. 😉