Da Humanização

Reprisando: em um texto dedicado à Ficção Científica Militar, mencionei três chaves narrativas para o tema: a Desconstrução, da qual falamos semana passada, a Humanização e a Glamourização. E agora, é a hora de falar da humanização. Não é um tema tão óbvio, porque ele parece estar no subgênero Real Robot praticamente desde o começo e tendemos a não percebê-lo de cara. Mas ela está lá — e trazer um pouco de foco é conveniente para mestres de jogo.

Se a desconstrução, no caso da ficção científica militar (na verdade, em qualquer ficção militar) consiste em desmontar qualquer glamourização da guerra na sua cara, mesmo se precisar esfregar horrores na sua cara, a humanização se trata de reconhecer a guerra como algo terrível mas focar na humanidade dos seus personagens, sua capacidade de serem bons em meio a um contexto muito difícil — ou, pelo menos, tentarem continuar sendo humanos normais.

Nem precisamos ir tão longe assim para encontrarmos exemplos. Só no real robot, a pedra fundamental dessa abordagem foi Superdimensional Fortress Macross, exibido no Brasil tanto na versão editada de Robotech quanto na versão original, exibida como A Guerra das Galáxias. E ele é bem isso: enquanto enfrentamos uma invasão alienígena, acompanhamos jovens pilotos procurando tocar uma vida mais ou menos normal — e se tornando identificáveis por isso.

Podem reparar: em Macross, tão importante quanto os
eventos dentro de um robô, é a vida normal fora dele.

Podem reparar: em Macross, a guerra nunca nos é vendida como uma aventura empolgante — basta lembrar das baixas no elenco da série — mas também não somos expostos aos seus piores horrores, a transtornos mentais, a mutilações, à violência pela violência (não precisamos dar exemplos). Ao invés disso, acompanhamos pessoas normais e seus dramas humanos pessoais, alternando-se e, posteriormente, se entrelaçando com a trama principal de alguma maneira.

Por outro lado, ele mergulha em uma contradição inerente ao subgênero dos robôs gigantes: queremos ver cenas de ação! Não há ficção desse tipo aonde algum grau mínimo de glamourização não esteja presente, seja com um elenco de pessoas jovens e atraentes, seja com os combates explosivos e empolgantes na tela*! O ponto é: em uma abordagem humanizada, acompanhamos esses personagens simplesmente porque gostamos deles e só isso, nada mais, nada menos!

O trunfo da humanização é este: mais importantes do
que o conflito em si são os próprios personagens!

Outro exemplo disso é Mobile Suit Gundam: The 08th MS Team — não por acaso recomendado por muitos como porta de entrada para a franquia. No Gundam original, já uma desconstrução, tínhamos transtornos de estresse pós-traumáticos, superiores abusivos, deterioração de laços familiares por causa do conflito… Aqui, não! Somos levados a empatizar com cada um dos personagens e, do lado inimigo, somos relembrados de que nem todo mundo ali é um monstro**!

Mas também é bom lembrar: essa abordagem não exclui a ação. Sim, seus protagonistas procuram fazer amigos, resolver problemas, arrumar uma namorada em algum lugar, mas não estão em um acampamento de verão! Vocês ainda cumprirão missões — e, paralelamente a isso tudo, sua trama pessoal vai se entrelaçar com a trama principal de alguma forma. Em Macross, o protagonista se apaixonou pelo virtual instrumento de salvação da humanidade, por exemplo***!

Esses momentos de interação são importantes — eles
farão com que nos importemos com os protagonistas!

Mas como isso se daria em jogo? Bom, não há nada de muito especial a ser feito. É mais uma questão de se focar também em interpretação, lembrando-se: no novo 3DeT Victory, qualquer coisa é uma disputa. Tentar fazer amigos com sua timidez é tratado mecanicamente de forma idêntica a um combate armado. Mas é possível apimentar um pouco as coisas: vamos adaptar aqui,  para encontros eventuais, a Matriz de Emoções do RPG japonês Tenra Bansho Zero****.

A ideia é simples: role dois D6, um para a linha, outro para a coluna. A frase ou palavra escolhida é o primeiro pensamento ou sensação transmitido ao se conhecer alguém. Claro, isso não é para ser usado com todo ou qualquer personagem — foque naqueles realmente relevantes ou potencialmente interessantes e, se o resultado desagradar o jogador, ele pode gastar 1PA para ajustá-lo um nível para cima, baixo, direita ou esquerda do resultado original.

Sim, admito: adoro tabelas.
Me processem por isso.

Só lembrando também: essa é uma atitude inicial. Suas impressões podem se alterar com o tempo, mas é aqui aonde você está quando tudo começa. Claro, esse material foi transcrito de outro jogo e realmente vai precisar de modificações, mas é um bom instrumento para otimizar a dinâmica entre personagens logo de cara. Só recomendo para os protagonistas não o utilizarem entre si. A chance disso gerar uma treta complicada em mesa é muito, muito grande.

Há vários materiais de guerra sob esta ótica — vide séries de televisão como Irmãos de Guerra (Band of Brothers), na Netflix— mas basta pensar em uma ideia simples: como seria se você, leitor, estivesse lá? Como você manteria sua sanidade e sua moralidade? Tudo começa com seus amigos. Eles serão fundamentais nesse processo. Um segurará a mão do outro. Lembre seus jogadores disso.

Até a próxima (quando falaremos sobre Glamourização) e divirtam-se.

Sim, episódios de praia com os pilotos fazem
parte dessa dinâmica. Vivam com isso.

* Pegue por exemplo um anime como 86: Eighty-Six, que cai claramente para o terreno da desconstrução da guerra em um contexto de ficção científica militar. Mas aí o comandante é a Vladilena Milizé, já nesse posto aos dezesseis anos e adoçando a vista do público…
** Mas sendo uma série Gundam,
não há como sair sem marcas ou preços a serem pagos. Assistam o capítulo 11 até o final dos créditos.
*** Na verdade, isso se repete de diferentes formas na franquia. Em Macross Zero, o protagonista se envolve (spoiler) com a condutora de uma arma de destruição da humanidade. Em Macross Frontier, a infecção de uma das deuteragonistas, Ranka, lhe trouxe a capacidade de se comunicar finalmente com os invasores e com isso ajudar a pôr fim na guerra contra os Varjas. E só para não esquecer do Gundam: 08th MS Team, o protagonista se apaixona justamente por uma piloto do lado inimigo, cujo irmão está ligado ao desenvolvimento de uma grande arma…
**** Traduzida pelo Bruno Schlatter. O Terra Bansho Zero é um cenário de fantasia asiática — e vocês podem conhecê-lo melhor AQUI.

NO TOPO: Imagem de Bang Brave Bang Bravern!

DISCLAIMER: Mobile Suit Gundam: 08th MS Team é propriedade de Bandai Namco Filmworks Inc.; Muv-Luv Alternative pertence à divisão Âge da Avex, Inc.; Super Dimension Fortress Macross é propriedade de Studio Nue, Inc. e Big West Advertising Co. Imagens para fins jornalísticos e divulgacionais.

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