A Campanha do Inimigo: Jogando

Semana passada, falamos de tipos de personagens antagônicos para sua campanha de Brigada Ligeira Estelar. Mas feito isso, é preciso pensar nas tramas e em como serão suas aventuras sob esse novo ângulo. Eu divido isso em duas abordagens básicas no seu nível mais fundamental: aquela onde os protagonistas são personagens não necessariamente maus, mas estão do lado errado e isso cedo ou tarde vai cair em suas cabeças, ou quando são vilanescos mesmo.

Começando pelos vilanescos, sem muitas delongas. Por qual motivo os jogadores iriam querer assumir esse tipo de personagem? Bom, eu mencionei de relance isso no artigo anterior: isso oferece proatividade. Personagens vilanescos sempre têm más intenções (em perfis como o do Inocente, isso tende a ser algo nada bom mas necessário, infelizmente) e por isso mesmo, eles precisam planejar e executar tudo por própria conta… e para o mestre isso é ótimo.

Para usar um exemplo não necessariamente vilanesco, imaginemos nosso grupo como um bando de piratas espaciais. Mesmo se eles não forem do tipo mais violento e criminoso, ainda são foras-da-lei e estão cometendo algum tipo de crime. “Vamos abordar uma nave transportadora de cargas da TIAMAT.” Isso exige planejamento de ataque, roubo e fuga. Claro, com isso eles ainda são um tanto “os mocinhos” aqui — a TIAMAT é um inimigo realmente injustificável.

Não, ser um pirata espacial não é necessariamente ser um vilão,
embora sejam foras-da-lei. Estamos é falando de outra coisa.

Com isso, os jogadores terão mais controle sobre seus próximos rumos e estarão menos presos às diretrizes do mestre. “Vamos sair desse sistema solar e nos esconder por uns tempos em… que tal uma lua terraformada no Sistema 7? De lá podemos nos planejar e dar um salto até Uziel, um pouco antes do Quadrângulo Negro”. Isso vale para personagens como estes em geral. Mesmo os vilanescos estão sempre tramando alguma coisa. E isso tem seu apelo próprio.

Por outro lado, especialmente se o grupo não se levar a sério demais ou não mergulhar no aspecto mais horrível da coisa, vilões podem ser muito divertidos. Não tente encontrar justificativa para humanizá-los demais, assuma o papel! “Percebi que vocês estão tentando evitar vítimas colaterais, mas a verdade é que eu adoro vítimas colaterais, hahahaha!*” O farsesco aqui ajuda a dar algum distanciamento para as coisas não ficarem por demais soturnas…

Archibald Grimms, de Super Robot Wars Original Generation:
The Inspector.
Assuma o “sou vilão sim, e daí?” — e divirta-se!

…e para lidar com o elefante na sala: esses personagens não são realmente dignos de simpatia. Além disso eles tendem a ser um grupo deliberadamente disfuncional: imagine um grupo composto por um nobre e seus cavaleiros regenciais. Imaginemos nossos protagonistas como um príncipe (o nobre em questão), seu primeiro-cavaleiro (um ascendente) e mais três cavaleiros (um brutamontes, um instigador e um zelote). Esse grupo é nitroglicerina pura na mesa!

Qual a missão deles? Bom, seu clã pode estar em decadência e com poucos territórios. Sua missão é absorver os domínios ao redor, sem cair no radar da guarda regencial local ou pior, da Brigada Ligeira Estelar caso eles dêem vôos mais altos. O problema é que vilões, de modo geral, são egoístas e interesseiros. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Cada um vai procurar sua forma de se beneficiar dessas novas circunstâncias, então a treta é inevitável.

Olhe bem para essa gente. Acha mesmo que eles
são flor que se cheire? Esses sim, são vilões!

Isso acontece porque, em geral, esses personagens podem até formar um grupo mas não foram feitos para protagonizar, e sim para antagonizar os protagonistas. Essa natureza meio divisiva deles ajuda a criar obstáculos para os heróis vencerem, além de criar uma “escada de evolução” a ser concluída ao enfrentarmos, enfim, o chefe principal na batalha final. Entre si, eles podem até formar um time funcional — mas, na verdade, não são tão unidos assim.

Isso levará a intrigas, alianças, traições, guerras de gabinete… e, claro, se a coisa se enredar, o jogador não deveria se surpreender caso seu protagonista acabe sendo uma baixa no meio do caminho. Essas coisas não costumam acabar bem para todo mundo e os jogadores deveriam estar conscientes disso desde o começo. Especialmente porque o sucesso de um plano perigoso pode estar condicionado ao rolamento de um dado. Ser um vilão é assumir os riscos.

Schwarzesmarken é um bom exemplo de como essa abordagem
cabe
muito bem no tom árido. Pilotamos robôs legais…

Da mesma forma, um mestre de jogo deve ser justo — mas nunca bonzinho com os jogadores, não nesse caso. Eles são vilões, droga! Se os protagonistas fizerem alguma coisa estúpida e as circunstâncias se voltarem contra eles, deixe-os escaparem dessa sozinhos. Se não conseguirem, pagarão o pato. Os jogadores inclusive podem ter interesses pessoais para deixá-los sem salvação. Se ninguém aqui presta de verdade, por que isso deveria ser cobrado deles?

Não estou falando em passar pano para suas vilanias ou buscar justificativas baratas. Basta lembrar do universo clássico de Gundam: a Federação Terrestre pode ser um peixe podre, mas o Principado de Zeon é uma Alemanha Nazista espacial, droga! Eles evaporaram com uma área inteira da Austrália e deixaram no lugar uma cratera coberta pelo oceano! Seu líder foi comparado a Hitler e considerou isso um elogio! Até sua iconografia visual denuncia isso!

…mas servimos a superiores filhos de uma (censurado)
e provavelmente, nada vai acabar bem.

É claro, sempre podemos partir para o terreno da humanização. Isso nos leva a uma abordagem até aceitável: a das pessoas não necessariamente ruins mas cujas lealdades estão para o lado errado. É preciso ter consciência: é o lado errado. Mesmo em uma campanha completamente vilanesca, a coisa pode funcionar pelo fato dos jogadores saberem aonde estão pondo os pés. Se um grupo jogar com a TIAMAT como heróis, encampando seu discurso, aí a coisa fede.

Isso nos leva ao novo Gundam: Requiem for a Vengeance, estreado outro dia mesmo na Netflix e que, por não ser uma animação japonesa no sentido estético da palavra, contando com co-produção ocidental até na parte criativa, provavelmente será o primeiro contato de muita gente com a franquia. A ideia aqui é uma humanização dos soldados do Principado de Zeon. Isso é válido. Eles também acreditam na validade dos seus princípios e isso também é válido.

Gundam: Requiem for a Vengeance — humanizar soldados, tudo bem. Mas
passar pano para quem jogou uma colônia na Austrália é bem diferente.

Mas em compensação, os princípios em questão deveriam ter sido desconstruídos — e não foram. Zeon é apresentado como uma força que luta pela liberdade das colônias, não como os conquistadores que são — e, no final, a decisão da protagonista em (spoiler) é tratada como um ato heróico, quando Zeon sempre fez o mesmo**. Solidarizar com os ferrados cujas vidas estão à disposição de uma causa irresponsável? É aceitável. Solidarizar com tal causa, não.

Eu falei um pouco disso na semana passada, mas acho melhor me detalhar um pouco mais no assunto. Um clássico do cinema de guerra, A Cruz de Ferro, de Sam Peckinpah, causou polêmica na época de seu lançamento por mostrar como personagens soldados nazistas. Mas eram nazistas mesmo? No filme, acompanhamos um bando de soldados bucha-de-canhão, cumprindo uma missão praticamente suicida que só beneficia um comandante egocêntrico — este sim um nazistão.

O Principado de Zeon em Gundam foi pensado como alegoria
do nazismo — e até hoje muita gente não entendeu nada!

A ideia aqui é mostrar como o soldado nazista, que adoramos ver tombar aos montes nos filmes de ação, muitas vezes não passou de um ferrado na vida que não pôde escapar do alistamento, foi tirado de casa e mandado para cumprir ordens horríveis nas mãos de gente da pior espécie, sem ter realmente como fugir. Tudo o que ele quer é não morrer. Ao redor, vemos como tudo está desmoronando para as forças alemãs. Isso eu aceito como abordagem aceitável.

Da mesma forma, o clichê do soldado confederado de volta para casa, ao fim da Guerra Civil estadunidense, não significa uma passada de pano. Em uma época na qual certos temas eram meio nevrálgicos para o cinemão de massa, esse recurso era usado pelos diretores de faroeste italianos como alegoria para se falar da própria Itália do pós-guerra: ao retornar, seu lar está arruinado, você voltou derrotado, humilhado***… e ainda lutou pela causa errada.

Tie Fighter: eu sei, eu sei. O império, esteticamente, é…
cool. Mas é justamente aí onde mora o perigo!

A minissérie Tie Fighter (por Jody Houser e Antônio Rogê), do universo Star Wars e publicada recentemente pela Panini em uma edição única, aposta nesse caminho de humanização: ao longo da série, vemos como as coisas estão mal para todo mundo em detalhes discretos****, mas gostamos dos protagonistas, queremos vê-los cumprir sua missão — e voltar vivos. O tom é aventuresco, não árido. Nem todos são partidários do Império mas a circunstância é essa.

Se eles fossem bravos heróis, lutando pela sua causa, eu olharia torto: o Império em Star Wars também é uma alegoria ao fascismo (e nem é uma alegoria sutil!) — mas meu ponto com tudo isso é: entre as três abordagens possíveis (glamourização, desconstrução e humanização), a única abordagem que não deveria ser aceita em mesa, para personagens vilanescos ou de um lado sabidamente errado, é a glamourização. Quero confiar na maturidade dos jogadores.

Bom, pelo menos os robôs são legais.
Aproveite enquanto pode.

Claro, é plenamente possível glamorizar uma campanha de piratas espaciais, por exemplo. Pegue qualquer filme de pirata dos anos 50, com personagens duelando com espadas, se dependurando em cordas e resgatando donzelas, e jogue sua trama no ambiente futurista da Constelação do Sabre. Não há nada errado com isso. Eu me preocupo é quando jogar “do outro lado” significa encampar discursos fascistas ou supremacistas. Tá, se você comprou, o jogo é seu…

…e o autor não deve dizer como seus leitores devem jogar — mas não contem comigo para avalizar isso. Por outro lado, é válida, quando falamos de um lado questionável, a abordagem de personagens humanizados (com perfis de personagem normais) enquanto seus superiores encampam perfis antagonistas. Principalmente se a campanha for de tom árido e aos poucos os personagens percebam aonde pisam.

Divirtam-se. Mesmo. Só peço responsabilidade.

Até a próxima.

* Isso é do personagem Archibald Grimms, do divertidíssimo Super Robot Wars Original Generations: The Inspector. Um dos melhores exemplos de glamourização no gênero.
** Aqui entramos em um spoiler aberto: a protagonista de Gundam: Requiem for a Vengeance decide permanecer heroicamente na Terra para lutar porque “viu o que a federação faz com crianças que poderiam ser seus filhos”, colocando-os para lutar (e dessa forma apontando o dedo para a franquia original). Mas Zeon faz isso e até pior! Basta lembrar de Quess Paraya, uma descabeçada menina de treze anos, manipulada inclusive por um adulto em Gundam: Char’s Counterattack, ou de Elpeo Ple e seus clones em Gundam Double Zeta!
*** Um bom exemplo disso é no clássico faroeste italiano O Dólar Furado, que abre com o personagem de Giuliano Gemma entregando sua arma às forças nortistas, ao final da guerra, antes de ser mandado de volta para casa. A arma é inutilizada em sua frente e devolvida, no que foi claramente uma analogia de emasculação.
**** Há uma cena no refeitório, na qual os personagens começam a abrir a boca e é recomendado não completar essa frase — alguém poderia ouvir e todos sabem o quanto isso poderia não acabar bem. Além disso, vemos os recursos começarem a escassear e o esquadrão precisando aceitar meros cadetes, graduados às pressas, para substituir as baixas de combate.

DISCLAIMER: Mobile Suit Gundam, Gundam: Requiem for a Vengeance e Mobile Suit Gundam Age pertencem à Bandai Namco Filmworks, Inc.; Schwarzesmarken pertence ao Studio Âge, à Ixtl e à Liden Films; Star Wars e seus derivados pertencem à The Walt Disney Company; Super Robot Wars Original Generation: The Inspector é propriedade da Bandai Namco Filmworks Inc. e da Asahi Production Inc.; Imagens para fins jornalísticos e divulgacionais.

Brigada Ligeira Estelar ® Alexandre Ferreira Soares. Todos os direitos reservados.

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