A Arte de Desmontar Bombas

Recentemente, a comédia mais divertida que andei assistindo foi… Mobile Suit Abridged: Gundam Wing. Sério. Para quem não sabe, “abridged” é uma palavra em inglês tradutível como “resumido”, “abreviado” ou “condensado”. Refere-se a algo encurtado ou reduzido em extensão, geralmente através da omissão de partes menos importantes, mas preservando o conteúdo básico. Mas, em termos de animes, ele ganhou da parte dos fãs um significado extra — paródia.

As séries “abridged” são paródias produzidas pelo fandom, geralmente com humor, encurtando e modificando o anime original com episódios mais curtos — mais diálogos e situações remexidas para fins cômicos. O detalhe: eu tenho severas críticas a Gundam Wing. Não vou entrar nesse mérito (até porque já fiz isso antes) — mas, para minha surpresa, o Abridged é um barato. Até porque Wing é cheio de absurdos, rombos de roteiro, soluções tiradas da cueca…

…e, embora sejam claramente fãs, o pessoal por trás da brincadeira está muito ciente disso! Contando com muitas cenas inúteis de episódios posteriores para remixar à vontade e sem a menor obrigação de se aferrar à ordem dos eventos originais, eles fazem a festa! Mas não vou falar de “campanhas abridged”. Falarei de algo abordado por mim no artigo citado MAS, aqui, quero ser mais amplo: a arte de se pegar o que não funciona… e remexer a seu favor.

Vou admitir, isso ficou sensacional.

Tenho dois precedentes ilustres para validar meu ponto. O primeiro é Alfred Hitchcock. Uma queda de braço no filme Rebecca, onde Hitch queria efetuar mudanças em nome do dinamismo, mas o produtor David O. Selznick exigia fidelidade, levou o diretor à decisão pensada de só adaptar obras comprovadamente ruins dali em diante. Com isso, sem a pressão de obras consagradas, ele tinha liberdade criativa total — e muitas vezes, superou o material fonte*.

O outro precedente é de ninguém menos do que o próprio Alan Moore, de V de Vingança, Watchmen, Monstro do Pântano e outros clássicos absolutos dos quadrinhos. De acordo com ele, ao ler “livros terríveis”, é possível identificar falhas e não apenas aprender a fazer algo bem melhor — mas também tirar deles inspiração para fazer algo decente, da melhor forma. O vídeo de Moore é fácil de se encontrar na internet, então não preciso entrar em detalhes.

E falando em anime ruim, não poderia esquecer de Cross Ange e seus diálogos brilhantes.

Tá, mas em RPG? Ora, meus caros, não é óbvio? A ideia é encontrar alguma tralha e enxergar o que presta ali para selecionar e fazer algo mais interessante! Mas como fazer? Bom, qualquer coisa do qual eu fale mal vai gerar um mar de discussões na minha caixa de comentários, então vamos partir para aquele considerado por muitos como o pior anime já feito: Tenkuu Danzai Skelter+Heaven. Eu não acredito que existam fãs dessa porcaria na face da Terra!

Como todos vão assistir (ou desistir nos primeiros minutos e não ligar mais para spoilers), vamos ao ponto. O que essa obra nos ofereceu? Resumindo, um monstro estático aparece no meio da cidade via teleporte no céu e ataca**, um grupo de meninas geneticamente criadas para pilotar robôs gigantes*** revidam e morrem uma a uma****, a garota principal se declara para o rapaz que as treinava… e ele é eliminado pelo Gendō Ikari Genérico por isso*****.

Agora, Skelter+Heaven não tem perdão nenhum! Nem pra diversão trash serve!

…e um ano depois, um monte daqueles mesmos bichos gigantes do começo aparecem. Só isso. Você desperdiçou vinte preciosos minutos de sua vida assistindo conceitos manjados, direção inepta, orçamento negativo, CGI digno de um mau jogo de Sega Saturn (em 2004) e roteiro ausente. Eu perderia muito tempo descrevendo tudo de errado por aqui — é o The Room****** dos animes de mecha. Como salvar algo dessa coisa? Aplicando a Regra da Reciclagem Criativa:

Se você duvida desse processo, compare os protagonistas de Gundam Wing…

Okay, vamos lá. Um ponto que me chamou a atenção é que, apesar dos kaijus******** de grande escala serem mais associados ao super-robot, a história é um real robot e os personagens precisam atacar em conjunto, com estratégia… e obviamente ninguém ali parece ter pensado nisso. De resto temos uma ameaça que surge com teleporte, e não é só uma. Como essa não é uma tecnologia comum no Sabre, mas superciência é para isso, já temos um ponto de partida.

E sim, temos as garotas bonitinhas replicantes, criadas geneticamente para terem vidas mais curtas, pilotar os robôs e encarar esses bichos, mas depois vamos ver como encaixamos isso na equação — e se realmente precisamos encaixar. Vamos imaginar que, um belo dia, surgem brilhos no céu de algum planeta na Constelação do Sabre e deles surgem criaturas enormes e extremamente destrutivas, que não podem ser enfrentadas sozinhas por um único hussardo.

…com os de Gundam 00. Sem Wu Fei genérico aqui, porque… ampute o inútil, certo?

Mentalmente isso já me leva a uma associação mental com algo melhor: Watchmen. Aviso de spoiler — lembram do monstro-lula do final (aliás, o monstro de Skelter+Heaven também é uma lula gigante teleportada. Hum…)? E se isso envolver a CIPED, em Altona, nem que seja para um centro de pesquisa e investigação no qual vocês possam se ancorar? E, se essas coisas foram teletransportadas, isso significa que alguém as enviou! Não precisam ser cefalópodes.

Na verdade, eles nem precisam ser vivos! Podem ser máquinas de guerra autorreplicantes, manifestações de uma consciência (alienígena?) testando defesas planetárias, o que for! Não importa: a chave é transformar o furo em gancho narrativo. Podemos substituir as garotas por pilotos que aceitaram implantes experimentais da CIPED, sofrendo sequelas aos poucos… e se elas vierem à tona, as autoridades prenderão o Professor Kobayakawa, que comanda tudo.

Quanto aos aliens de Skelter+Heaven… bem, sem comentários.

Sim, racionalizar com o lore********* do cenário é importante. Vocês não precisam usar a CIPED: podem criar uma IA inescrupulosa que começa a entender os pilotos como sacrificáveis, sei lá. É importante ter uma ideia clara do que é a ameaça. Talvez brechas em uma estrutura dimensional estudada pela CIPED tragam essas coisas, talvez sejam sondas de uma civilização extradimensional testando defesas da Constelação para invasões futuras… Você decide.

A chave é transformar o furo narrativo em um gancho jogável. Para isso, sua campanha (nesse caso) só precisa de três elementos racionalizados: a ameaça, o elemento dos pilotos com modificações — e a natureza do conflito central. Outras bombas precisem de elementos diferentes a se modificar, mas o raciocínio sempre vai ser o mesmo: identificar o núcleo, amputar o inútil e racionalizar o absurdo. Por fim, só falta uma coisa para arrematar por aqui.

Okay, não tentem racionalizar os trajes de piloto em Cross Ange. Nâo tem desculpa aqui. 😀

A arte de resgatar ideias fracassadas não é só sobre consertar erros — é sobre libertar sua imaginação. O mestre não está aqui para consertar uma obra ruim, mas transformar o fracasso alheio em um território virgem, onde suas regras reinam. O consagrado impõe um peso sagrado: fãs cobram fidelidade, universos complexos exigem pesquisa, o “e se eu estragar?” paralisa… Já uma desgraceira como Skelter+Heaven é um cadáver narrativo: ninguém a defende.

É claro, há obras populares que tem mil problemas, por mais que seus fãs chorem, e tudo bem saqueá-las para isso. O importante é: esses rombos são portas para sua criatividade. Você não estraga o que já nasceu quebrado, mas pode fazer algo melhor ou mais divertido. Sua mesa é o último tribunal das ideias falidas: seus jogadores NUNCA saberão que a campanha veio de um anime ruim… e se descobrirem, rirão com você.

Até a próxima, e divirtam-se MUITO!

Sim, ele vai sobreviver à explosão e a uma queda de doze metros, de cabeça, sem dano nem nas roupas.

* Meio que confirmei isso com Confissões de uma Ladra, o filme de Hitchcock baseado no romance Marnie, de Winston Graham. Esse treco foi um dos livros mais insuportavelmente CHATOS que li na vida, e embora o longa-metragem esteja longe de ser uma das obras-primas do diretor, ainda assim é um bom filme. Consta que a novela original de Os Pássaros, da mesma Daphne du Maurier citada, também não é grande coisa. Eu não li, mas acredito, até porque Rebecca é famosamente um plágio do livro brasileiro A Sucessora, de Carolina Nabuco, publicado nos Estados Unidos um ano antes.
** Na verdade, só fica parado e balança dois tentáculos pra lá e pra cá, para economizar em CGI.
*** Não tão gigantes, na verdade.
**** E você nem vê direito isso acontecer, novamente para economizar em animação. Repare que muitas cenas são implícitas, justamente por esse motivo!
***** Novamente uma cena implícita, e eu desconfio que muitos espectadores (“muitos” é bondade, sejamos francos) não entenderam porcaria nenhuma.
****** Famoso por ser um dos piores filmes de todos os tempos, The Room adquiriu status de culto entre fãs por ser uma das maiores aulas de como não se deve fazer um filme.
******* Eu sei que provavelmente você, leitor regular do blog ou fã casual de mangás e animes, não apenas conhece muito bem Neon Genesis Evangelion como frequentemente tem ele como seu maior referencial sobre o assunto, mas eu seria profundamente irresponsável se não me explicasse para alguém não-inteirado: essa série é um clássico da animação japonesa, trazendo mechas, drama psicológico e certa dose de horror cósmico. Ela influenciou muita gente, então não vou realmente pegar no pé de Skelter+Heaven por isso — há Evangelions genéricos bem bacanas, na verdade. Vou pegar no pé de Skelter+Heaven por ser um sub-Evangelion horroroso!
******** Kaijus são aqueles monstros gigantes que destroem Tóquio toda semana nas produções japonesas.
********* Para fins de RPG, lore significa o conjunto de informações relativas a um cenário.

DISCLAIMER: Mobile Report Gundam Wing, Mobile Suit Gundam 00 e Cross Ange: Rondo of Angel and Dragon são propriedades da Bandai Namco Filmworks, Inc.; Skelter+Heaven é propriedade de Idea Factory Co., Ltd. e King Records Co. Ltd.; imagens para fins jornalísticos e divulgacionais, de acordo com as leis internacionais de Fair Use.

Brigada Ligeira Estelar ® Alexandre Ferreira Soares. Todos os direitos reservados.

8 comentários

  1. A máxima é: Adapte somente obras ruins. Porque no progresso de adaptação você VAI produzir algo melhor

    E usar trolhas como fontes de boas idéias é outra arte á qual tenho uma adesão profunda (ainda mais depois de Moore e Hitchcock recomendarem).

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