Da Desconstrução

Há muito, muito tempo atrás, em meio a uma série de artigos sobre diferentes tipos de ficção científica para suas campanhas de Brigada Ligeira Estelar — mais especificamente no texto dedicado à Ficção Científica Militar, mencionei três chaves narrativas básicas para se lidar com o tema: a Desconstrução, a Humanização e a Glamourização. E agora, com uma mudança de sistema no horizonte, talvez seja a hora de voltarmos a esses temas em nossas mesas.

Mas primeiro, qual seria o tom padrão de Brigada Ligeira Estelar? Em outra ocasião, eu o defini como um cenário reconstrutivo. O comparativo é o relógio parado. Ao invés de jogá-lo fora, você o abre, examina todas as peças uma a uma, vê quais não funcionam mais (ou seja, você as desconstrói), as remove e troca por novas, fazendo o relógio voltar a funcionar (ou seja, você o reconstrói). Assim eu consegui encontrar um diferencial para meu cenário.

Por isso, Brigada tende a ser mais heróico em relação à média do gênero — e não custa lembrar: o Real Robot nasceu como uma desconstrução de tropos ligados ao Super Robot, mas se tornou uma construção em si e enfrentaria suas próprias desconstruções. Normalmente, elas são ligadas ao Tom Árido. E como parte da proposta de Brigada é trazer o maior número possível de facetas do gênero ao alcance dos jogadores, vamos começar por essa chave narrativa.

Você não está aqui para ser um herói. Você é um operativo de combate. E só.

Mas primeiro, um pouco de histórico: o Real Robot surgiu na época da Guerra Fria, com as piores perspectivas na mente de todos. E isso já estava se refletindo inclusive no Super Robot, em obras como Space Warrior Baldios* e Space Runaway Ideon**. Era uma tendência mundial, na verdade: basta olhar, nos Estados Unidos, obras como a Odisseia da Metamorfose***, ou em muito material publicado na Metal Hurlant**** francesa. Não era o melhor dos tempos.

O Real Robot aprofundou seus aspectos desconstrutivos cedo graças à Ryōsuke Takahashi e obras como Fang of the Sun: Dougram e Armored Trooper Votoms. O primeiro radicalizou o conceito de real robot em uma história na qual as máquinas tinham limitações, os combates eram táticos e o final, realisticamente, não foi tão feliz assim. No segundo, ele não mostra uma guerra sem bandidos nem mocinhos: todos são bandidos e o protagonista é um sobrevivente.

O final meio-amargo de Dougram é mais realpolitik do que violência.

A própria trilogia inicial de séries Gundam obedece a uma estrutura de construção (o Gundam original), desconstrução (Zeta Gundam) e reconstrução (Gundam Double Zeta). Podem reparar: os Titãs da segunda série são uma elite de combate da própria Federação! Ela já tinha problemas Na série original mas eles empalideciam perto do fato dos Zeon, na prática, serem nazistas do espaço. Agora, a Federação é o quê*****? Junte a isso as constantes mortes e…

Desconstruir é desmontar o relógio e expor as peças para apontar aquelas com problemas. E isso pode ser… inconveniente para aqueles cujo interesse é apenas usar o relógio — ou melhor, apenas assistir uma série e se divertir. No entanto, muitos apreciam a desconstrução. Ela pode ser arrojada e desafiadora, nos mostrar um cenário sem firulas e ser relatável justamente por nos trazer um contexto crível mesmo em uma ambientação fictícia. E dito isso…

Zeta Gundam: ponto alto da franquia, mas também triste para caramba.

…agora vamos às considerações práticas! Abordagens desconstrutivas tendem a pedir pelo tom árido, salvo se a ideia for ser mais satírico — contando mais com interpretação de personagens. Como agora temos um sistema de jogo definido (o 3DeT Victory), podemos ser mais objetivos quanto às regras, finalmente! Porém, o Victory não foi realmente feito para campanhas áridas! Como lidar? Bom, o próprio livro do sistema nos diz:

Avisando: na desconstrução, tudo de limpo ou heróico vai para o ralo.

Além disso, podemos reduzir o número de pontos de seus protagonistas. Normalmente, um personagem principal custa dez pontos e tem direito a dois pontos de desvantagens (totalizando assim, na prática, doze pontos). Mas se o mestre quiser tornar as coisas mais difíceis, os personagens podem ter sete pontos, mantendo seus dois pontos de desvantagem. Você é menos competente, menos poderoso, e com as regras descritas acima, as coisas não serão fáceis.

Este artigo já é antigo, e foi voltado ao 3D&T Alpha, mas recomendo a releitura: as regras sugeridas de dano localizado podem ser facilmente adaptadas ao 3DeT Victory: basta substituir “F–2 e PdF–2” por “P–2”. É possível chegar aos extremos das animações japonesas ultra-violentas dos anos 90: sendo atingido por um acerto crítico, além do dano maior, ele deve fazer um teste de Resistência. Com sucesso, nada acontece; no entanto, em caso de falha… 

Qualquer coisa, BUM!

…o protagonista terá um membro amputado, à escolha do mestre, ou rolado em um dado segundo os resultados abaixo.

Figurantes em cena e soldados bucha de canhão podem sofrer esses efeitos o tempo todo, sem defesa nenhuma.

Morte é morte e pode espirrar muito sangue — ou coisa pior.

Isso realmente remete a impiedosos e desesperançosos animes para vídeo (OVA) dos anos 90 como M.D. Geist e Genocyber, mas falta um item aqui: desconstruir a ambientação. Ou seja, todo o lado heróico da Constelação do Sabre seria desmontado por lentes ultra-realistas. Pilotos bem-intencionados acabariam marcados pelas perdas ao redor. O discurso não passaria de um discurso. Há cinza em tudo. Porém, pergunto: queremos mesmo isso para nosso cenário?

Por fim, deixo o mesmo conselho dado nos antigos artigos: colaborem entre si e protejam-se uns aos outros. Seus personagens precisarão disso para sobreviver. E, insisto, dêem uma chance para campanhas de lanceiros, embora seja muito possível aplicar essas regras aos hussardos — e quebrar seus espíritos, se for realmente esse o seu desejo. Mas você quer isso de verdade? Por qual motivo?

Até a próxima (quando falaremos de Humanização) e divirtam-se.

* Baldios — Guerreiros do Espaço (1980), como foi batizado aqui em vídeo, mas é preferível assistir a série antes de ver o longa-resumo. Seus temas ambientais são atualíssimos em nossos dias de crise climática… e é uma série extremamente pessimista, fica logo o aviso.
** Space Runaway Ideon (1980),
a série de Yoshiyuki Tomino imediatamente posterior a Mobile Suit Gundam. Começa meio problemático e termina uma obra-prima, mas também é um cenário impiedoso e com uma visão niilista da humanidade. Apesar de não ter sido um sucesso de público, ele explodiu as cabeças de uma geração de animadores — podemos dizer que não haveriam os OAVs violentos dos anos 90 sem essa obra (que assumidamente foi uma das inspirações de Hideaki Anno para Neon Genesis Evangelion, especialmente no longa The End of Evangelion).
*** De Jim Starlin. É a pedra fundamental da saga Dreadstar — pense em uma versão muito desconstrutiva e cruel de Star Wars. Saiu no Brasil pela editora Mythos, compilada no volume Dreadstar — O Princípio.
**** A Metal Hurlant foi uma revista francesa de antologia, com histórias de ficção científica e fantasia para adultos. Sua influência foi mundial, gerando a Heavy Metal Magazine nos Estados Unidos e sendo responsável por espalhar pelo mundo autores como Moebius, Philippe Caza e Enki Bilal. Seu efeito cultural extrapolou os quadrinhos e pode ser visto em outras mídias, como no cinema (Pense em filmes como Alien, o Oitavo Passageiro e Blade Runner) e na forma como enxergamos a ficção científica nos dias de hoje. E sim, sem ela, a animação de ficção científica japonesa não seria a mesma coisa a partir do final dos anos 70, podem acreditar!
***** É uma análise pessoal minha, mas… muito do Gundam original foi feito por uma geração que viveu o pós-guerra, a ocupação estadunidense no Japão (1945–1952) e a difícil reconstrução do país. Muitas de suas impressões remetem à Segunda Grande Guerra e apesar de muitos fãs fingirem não enxergar isso, Os Zeon claramente são nazistas do espaço (com direito a uma comparação textual entre seu líder, Gihren, e Adolf Hitler — enxergada por aquele de forma positiva). Porém, se enxergarmos a federação como os aliados e voltarmos à Zeta Gundam, nos lembraremos do que os Estados Unidos fizeram a seguir nas décadas seguintes, especialmente no Vietnã (cuja memória ainda estava fresca na mente de todos). Aqueles que lutaram contra monstros também se revelaram monstros — os Titãs são parte da federação, afinal! Essa foi uma desconstrução muito inteligente se pensarmos bem.

AGRADECIMENTOS ao Bruno Schlatter, por boa parte dessas regras opcionais na versão para 3D&T Alpha.

DISCLAIMER: Armored Trooper Votoms, Space Runaway Ideon, Fang of the Sun Dougram e Mobile Suit Zeta Gundam são propriedades de Bandai Namco Filmworks, Inc.; Orguss 02 é propriedade de J.C.Staff Co., Ltd.; todas as imagens aqui para fins jornalísticos e divulgacionais.

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