Novelando 1: Elenco

Eu ando bastante ocupado. Muita coisa tomou minha atenção nos últimos tempos e por isso não tenho assistido tantas coisas quanto gostaria. Mas finalmente, e com atraso, eu parei para dar atenção à novela filipina Voltes V Legacy. Ela é baseada — dã — na série animada clássica Voltes V, intensamente amada pelos filipinos e muito associada ao fim da longa ditadura de Ferdinando Marcos no país*. Já falei dela algumas vezes por aqui por bons motivos.

Voltes V é uma série de super-robô. Só lembrando, ela é parte da famosa Trilogia do Romance dos Robôs de Nagahama** e ajudou a subir a régua qualitativa nas séries do gênero. Em uma época na qual essas séries eram feitas praticamente à quilo, o tom no geral era mais infantil — mesmo quando o seu correspondente em mangá não era tanto assim***. Nagahama investiu em desenvolvimento de personagens e na humanização dos vilões, fazendo escola com isso.

Essa não é uma opinião pessoal só minha, mas com certeza o real robot**** não seria o mesmo sem essa trilogia de super-robôs. Já falei várias vezes sobre essa série por aqui, em algum momento ou outro, mas dessa vez quero falar mais de outro aspecto: Voltes V Legacy é uma telenovela em formato… e a série original já dava o caminho das pedras para isso! Como tudo dialoga com o tom folhetinesco, acho interessante trocar umas ideias sobre o assunto.

É uma novela sim, mas não nos esqueçamos dos robôs gigantes!

Primeiro, um pouco de história: tudo se deve a uma das criações mais geniais da cultura de massa — o folhetim. Ele ficava em uma área dos jornais conhecida como “pé de página”, na segunda metade do século XIX. Na falta de conteúdo para os jornais, toda encheção de linguiça era manejada para esse canto. Como o lugar cabia qualquer coisa mesmo, de poesias a receitas de bolo, alguém decidiu enfiar uma narrativa seriada em capítulos curtos e diários.

Deu certo. E muito. Chegamos a um ponto no qual todo jornal tinha o seu próprio folhetim diário — até mesmo os jornais operários da época tinham um! Obras como Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, Os Miseráveis e outros futuros clássicos eram publicadas em conta-gotas, capítulo a capítulo, monopolizando as conversas de rua do povo sobre os rumos dos personagens. Tramas melodramáticas, personagens exagerados — parece familiar para vocês?

Novelas precisam manter o interesse: triângulos, novos personagens, viradas…

A farra só acabou por motivos políticos: depois da Comuna de Paris*****, as forças conservadoras decidiram cortar essa liberdade toda e criaram uma lei taxando os jornais com pé de página. De repente, boa parte dos jornais não poderiam mais manter um folhetim diário******. Mas tudo bem, porque um novo de comunicação se avizinhava no novo século: o rádio. Surgiram assim as radionovelas. O formato do folhetim só mudou de casa… e se espalharia mais.

Para não perdermos mais tempo, e irmos direto ao ponto, basta dizer: das telenovelas aos mangás semanais, dos podcasts com histórias seriadas aos quadrinhos de super-heróis com seus ganchos dramáticos para a próxima edição, das séries de televisão e streaming contínuas até qualquer outra forma narrativa seriada que você imaginar, todos devem tudo aos folhetins e bebem, de algum modo, da sua estrutura e do seu formato. E no que isso nos interessa?

…e tretas. Porque o povo gosta de treta. “Como é que é? COMO É QUE É?”

Uma campanha de RPG é uma narrativa seriada, droga! E como uma telenovela de robôs gigantes foi colocada no mundo, com a chancela de uma série animada clássica que já tinha características novelescas, eu acho interessante pensar em como se pode usar esses recursos a seu favor para mestres e jogadores com muito tempo livre! Sim, nos tempos de hoje é complicado pensar em campanhas realmente longas, sem um fim à vista, mas se você e seu grupo podem…

Para começar, vamos falar dos personagens. Uma ideia trabalhosa para o Mestre, mas interessante como pedra fundacional, é traçar uma linha de relações para seus personagens e coadjuvantes, gerando novos coadjuvantes que geram novos coadjuvantes. Deixe-os soltos mas faça-os cruzarem seus caminhos entre si. Vou usar o gerador de personagens inspirado em Mekton Zeta (que é bem folhetinesco) para criar o elenco. Os nomes virão de nosso outro gerador.

“Tire as garras que o príncipe é meu, sua vaca!”

Escolhi esse modelo por gerar coadjuvantes aos montes. Vamos aos detalhes.

Não reclamem: muitos desses elementos já estavam na série original!

E se Sergei não estiver ciente dessa mutilação? Se Lea pensar que ele o abandonou, fazendo-a ser mutilada (uma cicatriz, um membro perdido, um olho, etc.). E se não deixaram-na vê-lo, e ambos agora se odeiam sem ter uma ideia clara do que ocorreu? E se ela foi transformada em uma ciborgue com implantes invisíveis, em segredo? E se sua irmã Marfa fosse a melhor amiga dela, soubesse dos implantes — e comprasse a versão de Lea, culpando o seu irmão?

Imaginemos que Sergei saiu do planeta, eventualmente se alistou na Brigada Ligeira Estelar e, por ter se alistado em outro mundo, pode ter sido designado para Arkady, seu planeta de origem. Mas e se o professor fosse o responsável pelos implantes de Léa? Alguma coisa está surgindo aqui, a partir dos personagens. A ideia é: passar todos os coadjuvantes por esse processo… e criar mais coadjuvantes ainda! Uma novela é uma teia que se expande sempre!

Novelas precisam de vilões, certo?

Começou a perceber a teia se embolando? A irmã deste jogador já trouxe um novo elemento à tona: a morte do garoto de quem ela gostava. Um dos truques é preencher algumas vagas com nomes já existentes: sabemos quem são os irmãos dela e uma amiga próxima, então não há necessidade de criar mais de um amigo.

Se vocês acharam Voltes V novelesco, é porque não assistiram Tosho Daimos*******!

Como precisaremos passar por todo mundo, eu não vou detalhar tudo e todos por aqui — isso faria este texto imenso. Nos limitaremos apenas à Lea: quem são os amigos dela que não são necessariamente amigos de Marfa? Eles tem elementos de trama que podem ser trazidos à baila? Vamos dar uma olhada.

A primeira rolagem de classe deu “Alta Nobreza. Filhos dos irmãos do duque e seus herdeiros diretos, netos não herdeiros do duque com títulos de grandeza (príncipes).” Ou seja, essa inimiga é uma princesa.

Esses exageros melodramáticos fazem parte dos animes desde sempre…

Mas porque ela viveria em um ambiente de classe média, tendo como melhor amiga uma garota desse mesmo estrato? Hora do mestre pensar à frente: e se ela apenas tivesse sido criada assim e não soubesse de sua verdadeira origem? Rolando a tabela, temos uma tragédia: os pais dela desapareceram. Então quem pôs nela implantes invisíveis, fazendo-a se passar por uma humana integral? Isso não é barato! Repararam quantos ingredientes temos para esse bolo?

“Tá, mas isso é para um jogador. E o resto?” Ora, faça isso com todos os demais jogadores e com os coadjuvantes deles. Vai sair muita coisa a deixar guardada à frente, ou para ser mencionada e esquecida — você não está montando a história ainda, está montando sua caixa de brinquedos! Ao fazer isso você vai cruzar elencos coadjuvantes e montar núcleos de personagens. Por exemplo: tudo indica que os pais dela sumiram — e outros tomaram sua posição.

…e as princesas não apenas sobreviveriam ao super robot

Também indica a presença de um núcleo científico. Quem foi o benfeitor da princesa? Ela pode estar sendo vigiada por aqueles leais aos pais dela, à distância. Temos dois núcleos ligados à nobreza — os usurpadores e os fiéis aos nobres por direito. E temos um núcleo científico, claro. Se o professor ou mentor estiver ali… e cruze os elencos criados pelos demais jogadores. Vai facilitar a vida do mestre — e gerar novas reações dramáticas em cadeia.

Tudo está ligado: o segredo da estranha morte do interesse amoroso de Marfa, o segredo que Lea ainda não sabe (guarde isso para uma reviravolta bem mais à frente na trama), o mistério que a transformou em uma ciborgue, nosso protagonista e os elencos podem se cruzar. E se outro dos protagonistas se interessar por Lea e ela quiser usar isso para fazê-lo se voltar contra Sergei? Ela o odeia e não tem muitos escrúpulos! Só falta combinar com alguém:

…como até hoje estão em todo tipo de animes do gênero (ô casal chato!)

Sim, os espectadores… leia-se, os próprios jogadores. Uma telenovela é uma “obra aberta”. Você pode até ter uma ideia de qual será o final (por isso novelas como Kubanacan******** e Meu Bem, Meu Mal*********, com finais que sabem puxar o tapete do espectador, têm crédito para mim) mas o meio do caminho está sujeito à todo tipo de interferência: certas tramas não pegam, algum personagem crescem demais, outros acabam apagados e somem, e por aí vai.

Sua campanha também é uma obra aberta. Tendo o elenco armado, você precisa planejar seu ponto de partida e deixar rolar. Mas isso não é feito sem método — o mestre vai enlouquecer se precisar improvisar todas as variantes possíveis pelo caminho. Por isso (e porque, como bom folhetim, precisamos manter o interesse de nosso leitor até o próximo capítulo), nos esperem na próxima semana, com a segunda parte deste artigo!

Até a próxima — e divirtam-se!

* Durante a ditadura de Ferdinando Marcos (1972-1986), a série foi exibida nas Filipinas e tornou-se um sucesso monstruoso de audiência, monopolizando a atenção de uma geração inteira de crianças. Porém, os quatro últimos episódios tinham um conteúdo explosivo e a carapuça serviu. O Governo proibiu a exibição da série. Essas crianças cresceriam ultrajadas, conscientizadas no tranco (elas nunca foram afetadas até então e se deram conta do quanto estavam sem poder por causa disso) — e foi essa geração quem derrubou Marcos quando elas cresceram. A série foi exibida completa com o fim da ditadura e tem um status simbólico enorme para o povo filipino até hoje.
** Combattler V, Voltes V e Tosho Daimos. Essa trilogia de super-robôs subiu a régua qualitativa do gênero e foi fundamental para as mudanças que viriam com o Real Robot.
*** Basta comparar os brutais quadrinhos do Getter Robo de Ken Ishikawa com sua versão televisiva. Isso era comum, na verdade.
**** Só para quem está chegando agora: os robôs gigantes, como gênero, costumam ser divididos em duas categorias — o Super-Robot (com robôs mais super-heróicos de dimensões colossais, geralmente o único do lado dos mocinhos, enfrentando um monstro por vez), e o Real Robot (com robôs gigantes de tamanhos mais plausíveis, apesar de seu tamanho). A fronteira entre esses dois é meio turva e frequentemente um empresta características mais associadas ao outro. Brigada Ligeira Estelar se enquadra como um Real Robot, inclusive.
***** A Comuna de Paris (de 18 de março a 28 de maio de 1871) foi a primeira insurreição socialista bem-sucedida na história — por um breve período. Mais detalhes, AQUI.
****** Mas qual a relação entre a Comuna e os Folhetins?
Bom, tem um nome envolvido: Eugène Sue. Um dos maiores autores de folhetim de todos os tempos (talvez o maior ao lado de Alexandre Dumas), ele escreveu uma longa série chamada Os Mistérios de Paris — e ao pesquisar as condições de vida da população para usar em suas histórias, se horrorizou, tornando-se um socialista de primeira hora. Isso se refletiu no seu trabalho e suas observações e críticas se tornaram parte fundamental da obra, alcançando uma massa monstruosa de leitores e as conscientizando em muitos aspectos — provavelmente pavimentando a aceitação popular para o movimento. Após a derrubada da Comuna de Paris, a conta veio para cima de todos os jornais que publicavam folhetins, ao ponto do povo apelidar essa nova ordem de “Lei Eugène Sue”.
******* De Tadao Nagahama, criador de Voltes V. Terceira série da sua trilogia clássica, é o primeiro anime de robôs gigantes a colocar um romance na linha de frente da trama. É folhetinesca até a medula — e vai ganhar sua versão televisiva filipina também!
******** De Carlos Lombardi. O autor contrabandeou uma novela de ficção científica sobre viagem no tempo e paradoxos temporais por baixo dos narizes da Globo, pouco simpática a esses temas em geral. Poucos autores teriam a coragem de terminar uma novela com uma frase como “Surpresa, Vagabunda!” e um paradoxo temporal não muito feliz em nossa cara.
********* De Cassiano Gabus Mendes, com provavelmente o melhor último capítulo de novela em todos os tempos. Alerta de spoilers: no final, a vilã vence e consegue tudo o que quer. Porém…

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