Um grande erro ao se pensar em BRIGADA LIGEIRA ESTELAR é pensar em uma obrigatoriedade de se ver 753043806 animações com robôs gigantes para poder fruir o jogo. Seus livros em si devem apresentar o cenário e ser auto-suficientes nesse sentido — isso precisa valer para qualquer livro de RPG digno desse nome, aliás. Mas muita gente acredita nisso. Serei direto aqui: você não precisa das referências para jogar e nem deveria. Porém, contudo, todavia…
… as referências são um instrumento enriquecedor para qualquer mestre. Especialmente quando, apesar de todos os nossos esforços (e isso pode acontecer com qualquer RPG), os jogadores não entendem muito bem como as coisas funcionam no cenário — nem tudo se explica claramente por uma conversa do mestre antes da mesa de jogo e creio ser este um dos motivos da primazia da fantasia medieval nesta mídia*. E Brigada tem sua origem em uma mídia visual**.
Então decidi discutir um pouco mais sobre a questão das referências, dos motivos pelos quais nos agarramos a elas e dos motivos pelos quais devemos nos desgarrar delas. É um assunto extenso e tenho medo de me estender demais aqui mas, antes, é preciso dizer: todo processo criativo parte de referências adquiridas ao longo da vida e quanto mais processos criativos cruzarem o nosso caminho, mais referências teremos. Dito isto, vamos ao que vende***.
Referências: Por que Sim
A maioria das pessoas certamente ouviu aquela piada velhusca sobre o Hulk encontrando a Mulher-Maravilha na cama e se jogando sobre ela, matando o Homem Invisível. Mas, se você teve coragem de rir, foi por ter uma imagem mental dos personagens envolvidos e, embora não exista um “Homem Invisível” no universo Marvel/DC (pelo menos não com esse nome até onde eu saiba), tal conceito é plenamente auto-explicativo: você nem precisa saber se ele existe.
Porém, imagine se você não soubesse quem é o Hulk ou a Mulher Maravilha, por algum motivo qualquer. Referências funcionam assim. E não há mídia tão dependente de referências, tanto as de cenário quanto as trazidas pelos próprios jogadores, quanto o RPG. Eu só preciso dizer duas palavras aqui: Apêndice N. Sem as obras citadas nessa pequena lista de livros e autores no final do livro, não existiria o Dungeons & Dragons. O mestre precisa encará-las?
Na verdade não. Um bom RPG é plenamente capaz de se explicar e tenho minhas dúvidas se a grande maioria dos jogadores de D&D, mundo afora, procurou ler Jack Vance ou Fritz Leiber**** graças ao jogo. Mas com certeza os mestres e jogadores dispostos a fazê-lo obtiveram uma experiência mais rica com o material — e isso se refletiu em suas mesas. O Dungeon Crawl Classics (DCC), aliás, é um exemplo claro de mergulho direto e aberto nessas referências.
No entanto, isso não se limita aos mestres. O jogador certamente trará algo de algum lugar. “Quero jogar com um cavaleiro de armadura negra e ele tem um falcão”. A maioria dos RPGs de fantasia medieval já vem preparada para criar um personagem assim. Mas o jogador também pode vir com um “quero jogar com um cavaleiro como o do Feitiço de Áquila*****, com falcão e tudo.” Isso é referência. E, se você a conhece… não são mais necessárias explicações.
Aqui voltamos ao Brigada. Assim como D&D tem sua gênese nas obras e autores mencionados no seu Apêndice N, Brigada tem a sua em obras e autores de outras mídias: a animação japonesa de ficção científica e em algum grau, outras obras do mesmo gênero. À medida na qual eu mergulho nelas, em meu papel de autor, percebo as influências desses materiais e isso acaba sendo incorporado como influência também. Isso explica as decisões criativas do cenário.
Por isso falo tanto de referências e de como encaixá-las em suas campanhas. De tipos de personagem para jogadores e mestres. A bem da verdade, isso tudo não deveria ser considerado uma obrigação para se jogar. Mas conhecer as suas referências agrega solidez ao jogo e pode levar a mais possibilidades de aventuras. Elas enriquecem o material. Comunicam ideias imediatamente sem longas explicações. E agora, precisamos ir para o outro lado da questão.
Referências: Por que Não
Como eu disse lá em cima, um bom RPG é plenamente capaz de se explicar sozinho e por isso mesmo, tantas editoras investem em caixas com kits introdutórios ou livretos de jogo rápido, impressos ou em formato .pdf (os quickstarts): é pegar, se familiarizar logo com os conceitos envolvidos… e jogar. A maior parte dos jogadores de D&D, como mencionado lá atrás, não precisou correr atrás dos livros e autores do apêndice N para matar seu primeiro ogro.
E talvez o excesso de referências esteja no caminho dessa simplicidade ou, pior, seja intimidador para os jogadores: “Eu não assisti/li essas séries todas, e agora?” — e este foi um dos motivos pelos quais vários jogadores temiam encarar o espetacular Castelo Falkenstein nos tempos de sua publicação pela Devir: lembro deles, em fóruns, dizendo não ter ideia de como jogá-lo por não conhecerem os personagens. E o cinema não tem ajudado nisso…******
Nessas horas, talvez o modo de se lidar com a situação seja deixar referências de lado e partir para a explicação crua e bruta: vocês são __ e estão aqui para enfrentar __ e __. D&D? Vocês são heróis e estão aqui para enfrentar monstros e salvar a todos. DCC? Vocês são saqueadores e estão aqui para enfrentar monstros e encher as calças de dinheiro. Falkenstein? Vocês são cavalheiros vitorianos e estão aqui para enfrentar vilões e salvar a Europa.
Em Brigada Ligeira Estelar? Vocês são pilotos de robôs gigantes e estão aqui para enfrentar outros robôs gigantes e salvar um Império Espacial. Não é preciso nenhuma outra explicação no primeiro momento, antes de lhes oferecermos detalhes maiores de cenário, porque eles virão. Deixe-os primeiro experimentar o cenário em seus termos mais simples, básicos e objetivos, sem firulas. O resto pode ser compreendido intuitivamente com o seu devido tempo.
É claro, a estética dessas obras pode ajudar sem grandes problemas. Se um cenário de fantasia for estilisticamente ilustrado como se fosse saído de algum anime menos adulto do gênero, ele certamente será percebido de forma diferente pelos jogadores (e pelo mestre) em comparação a um RPG ilustrado com artes de quem cresceu apaixonado pelos cenários oitentistas de AD&D. Isso pode influenciar sim a atuação dos jogadores — mas é um detalhe útil e só.
No final das contas, precisamos deixar claro: o cenário não é nenhum bicho papão e pode caminhar pelas próprias pernas. Você não precisa ver nenhuma animação com robôs gigantes, ou com naves espaciais, para se aventurar na Constelação do Sabre. Talvez isso até mesmo sirva para despertar em você algum interesse no gênero — e correr atrás de referências no futuro. Ficaremos felizes se isso ocorrer mas, agora, você só precisa jogar. E isso já basta.
Algumas Palavras Finais
Nada aqui é um mea culpa. Do meu ponto de vista pessoal, as duas abordagens tem razão de ser e ainda acho aquela sessão de vídeos bem escolhida, antes de se montar a ficha de jogo, o modo mais eficiente de se colocar os jogadores no clima da ambientação (se a sessão não for tão bem escolhida, ela só vai atrapalhar). Mas depois dos vídeos, esqueçam o assunto. É hora de jogar: deixem tudo por conta do mestre e do cenário em si. Isso deveria bastar.
No entanto, isso é só um facilitador, não uma regra! Embora eu realmente adore falar de referências, nada substitui a experiência concreta e uma coisa não invalida a outra. Vocês não precisam nem desses vídeos — se o mestre de jogo for eficiente, souber passar os conceitos e mergulhar os jogadores no universo da ambientação, já é suficiente. Joguei por anos em praças de alimentação de shopping center e lanchonetes e nunca tive problemas com isso.
Depois, se o mestre realmente sentir vontade de mergulhar nisso, há vários canais de streaming à disposição — as coisas estão bem mais fáceis em comparação ao meu tempo de simples jogador e podemos encontrar muita coisa de forma oficial, sem o sufoco de levar semanas para baixar um anime menos popular em algum cliente de torrent (ou pior, depender de programas para troca de arquivos — como os finados Hotline e Carracho. Não, você não quer saber).
O importante aqui é jogar. Então… joguem! Montem comunidades no Discord, no WhatsApp ou no Telegram. Joguem à distância com programas como o Roll 20, Foundry ou tantos outros, ou reúna os amigos (mas usem máscara!). Introduza o cenário como for melhor mas, no final, não deixem nunca de rolar os dados. Experiência RPGística se faz jogando.
Até a próxima e… desculpem o tamanho do texto dessa vez. Se eu tivesse tido mais tempo, faria dele mais curto.
* É uma opinião pessoal, mas meu ponto é: além do fato de ter sido o primeiro gênero do RPG como mídia, e portanto definidor, a fantasia medieval é auto-explicativa: você é um cavaleiro, um bárbaro, um bruxo, um ladrão, o que for — e vai andar por aí encontrando monstros e pegando tesouros, preferencialmente nos castelos alheios. Não são necessárias grandes explicações e qualquer um pode se ambientar imediatamente em um contexto desses: é pegar uma espada e sentar o sarrafo. Em níveis tecnológicos e sociais posteriores, seus personagens — caso fizessem isso — acabariam é na cadeia.
** No caso, a animação japonesa de ficção científica, com ênfase na space opera.
*** Isso também é uma referência, mas quem tem menos de sessenta anos não a reconheceria. Eu mesmo só a conheço porque meu pai costumava citá-la e a incorporei por tabela. Não vou esclarecê-la para dar um pouco de trabalho a vocês, mas essa é uma citação que não precisa ser pega para ser entendida — apenas é pouco provável de desperar o “aaaah, entendi a referência”.
**** Autores de fantasia. Vance já foi publicado por aqui em tempos idos e Leiber recentemente teve um financiamento coletivo para suas obras no Brasil pela Sagen — infelizmente, não foi desta vez.
***** Fantasia medieval romântica que costumava frequentar as antigas Sessões da Tarde. Lembrar-se desse filme nessas condições, aliás, já virou um sinal de idade.
****** Antigamente, tivemos várias adaptações de personagens e obras clássicas — Vinte Mil Léguas Submarinas, o Prisioneiro de Zenda e tantos outros. Só Sherlock Holmes resiste e olhe lá.
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