Eu já falei isso um punhado de vezes em alguns artigos, mas nesse caso me parece inevitável voltar ao tema: o Ocidente em geral (e os Estados Unidos em particular) tende a, culturalmente, desumanizar seus inimigos a um nível extremo. Crescemos vendo séries e filmes mostrando oponentes monstruosos. Na animação, é fácil encontramos vilões desfigurados — como o Comandante Cobra de Comandos em Ação ou o Dr. Terror dos Centurions — ou mesmo inumanos*.
Aliás, é bom dizer: quando o inimigo tem uma aparência mais humana ou transmite algum tipo de dignidade, em algum momento ele deve mudar de lado. Empatia não é permitida para esse inimigo, salvo se ele for engraçado e seu destino for ser socado de volta ao seu lugar para tentar de novo. O ridículo também é uma forma de desumanização. Adversários mais empatizáveis são coisa ocasional, com direito a moral da história e arrependimentos em público**.
Mas no Japão há outra cultura quanto aos inimigos importantes: é preciso se identificar com o oponente. Ser um inimigo à sua altura e, assim, poder vencê-lo. E para isso acontecer, você precisa respeitá-lo. Uma forma melhor para se entender essa relação pode ser encontrada na influência do Spokon — os mangás e animes de esportes — na era dos super-robôs. Muita da energia desse tempo, homenageada abertamente em Tengen Toppa Gurren Lagann, vem daí.

diferente de “vamos levar nosso time de beisebol para a vitória?”
Na verdade podemos traçar essa postura no bushidô e nos códigos de honra celebrados nas histórias de samurai em diferentes mídias. No entanto, após a derrota na Segunda Grande Guerra e na ocupação estadunidense do país, houve um cerceamento midiático das temáticas ao redor das quais o nacionalismo japonês pudesse se agarrar. Assim, histórias de guerra e de samurai saíram do mapa — e os quadrinhos esportivos passaram a canalizar essas posturas***.
Os materiais de esporte se popularizaram e experimentaram um boom na virada dos anos sessenta para os setenta e esse espírito de dedicação e trabalho em equipe se espalhou para outros gêneros ao longo da década. Não tínhamos inimigos, mas rivais, e essa mentalidade encontrou um campo adequado para florescer. Em um primeiro momento essa influência não foi absorvida nos inimigos. Ninguém respeita monstros — e os vilões do super-robôs eram isso****.

ser humano conseguiria ter identificação com essas coisas aí?
E de novo, veio a Trilogia do Romance dos Robôs de Nagahama para mudar o jogo. Em Combattler V, o vilão estava longe de ser um bobão: ele era engenhoso e embora tenha deixado marcas graves na vida dos protagonistas, sua morte foi lamentada por estes como um adversário à altura. Em Voltes V, todos tinham razões válidas para seus atos. Em Tosho Daimos, o romance entre personagens de lados diferentes serve para humanizar ambos os lados do confronto.
Em suma, na trilogia de Nagahama, os vilões não eram mais monstros: mesmo como alienígenas, eles eram extremamente humanos, com algum detalhe cosmético pouco influente em sua percepção (chifres em Voltes V, asas em Tosho Daimos, mas de resto…). Esse conceito rapidamente se tornaria influente e foi abraçado de cara pelo real robot quando de seu surgimento: na primeira série Gundam, Char Aznable tinha uma motivação muito válida para seus atos*****.

parasitas não é um motivo para lá de justo, não?
A partir daí, temos uma lista enorme: ainda em Gundam, ao assistirmos o tratamento das colônias pela federação na série ZZ, a mudança de atitude do mesmo Char Aznable no longa “Char contra-ataca” se torna mais compreensível******. No Patrulha Estelar original, Desslok de Gamilon******* nos é apresentado de forma mais vilanesca a princípio, mas mais tarde mostrará excelentes motivos para suas ações (e evoluirá imensamente como personagem)********.
É interessante notar: tanto Char quanto Desslok acabam evoluindo de arqui-inimigos para aliados e até amigos dos protagonistas (embora Char sofra um retrocesso). Isso costuma acontecer quando os arqui-vilões são alcançados pelo protagonista, atingem o mesmo grau de respeito mútuo, são vencidos, o vilão reconhece honradamente a sua derrota… e sobrevive ao seu papel, mudando de status. Porque normalmente isso termina em “suicídio honrado”*********!

com dignidade”, como ocorre no final de Code Geass.
É interessante traçar um paralelo com uma variação romântica do conceito: a piloto do lado inimigo, talvez a melhor dentre eles, surpreendentemente é derrotada em combate pelo protagonista. Querendo revanche, é derrotada uma segunda vez e torna o adversário uma obsessão sua. Aí ela se apaixonará, por ter encontrado um homem à altura, e mudará de lado no fim. Percebem o quanto esse misto de rivalidade e reconhecimento é fundamental nos dois casos?
É importante lembrar: nem sempre o vilão principal pode ser humanizado. Nesse caso, o papel de vilão alvo de admiração ou empatia pode cair nas mãos de um executor — alguém a seu serviço, talvez um braço direito ou não, mas cuja presença será mais intensa no caminho dos personagens jogadores. O próprio Char é um bom exemplo: o grande vilão na primeira série não era ele. Se o vilão for monstruoso de alguma forma, esse recurso será puxado da manga.

inimiga, então podemos chamá-lo de “executor” aqui.
No final, é importante pensar no melhor para a campanha. Lembrem-se sempre, nem tudo o que funciona perfeitamente em um anime ou em um mangá funcionará na mesa. Um vilão que passe para o lado dos heróis pode tornar tudo muito fácil — e, lembrem-se, as estrelas são os jogadores. Muitas vezes a morte honrosa, de quem prefere explodir com sua nave a viver na infâmia, pode ser mais funcional. A série Capitão Harlock tem sua cota de personagens assim.
Esse é um tema a ser melhor desenvolvido — estou só jogando a semente. No fundo, o vilão principal pode ser pensado de forma simples: seu sucesso será a catástrofe para todos. Talvez toda a campanha seja baseada em impedi-lo. É preciso passar por vários inimigos até se chegar à ele. Mas esse inimigo pode ser memorável e quem sabe, ele possa admirar os protagonistas. A ponto dele querer a honra de matá-los, por que não?
Até a próxima e divirtam-se.

dos Três Mosqueteiros… e também quem mais os admira.
* Não que eles não existam na produção japonesa: basta lembrar de Shishio Makoto em Rurouni Kenshin.
** Você certamente viu em algum He-Man ou She-Ra da vida esse tipo de coisa. “No episódio de hoje, vimos alguém que tomou uma atitude errada porque…”
*** O mais clássico exemplo é a série pré-tezukiana Norakuro, de Suihō Tagawa (1931). A série foi um grande sucesso, sendo lembrada até hoje, e envolvia a ascensão na carreira militar de um gato no exército. Com a ocupação estadunidense, a temática foi restringida e por isso o personagem foi reinventado de diversas formas, inclusive como um atleta.
**** O Mazinger Z de Go Nagai nos brindou com um verdadeiro circo de monstros, a começar pelo próprio Dr. Hell — mas, pessoalmente, eu escolheria como exemplo mais bem-acabado o grotesco Killer the Butcher, do Zambot 3 de Yoshiyuki Tomino. Apesar dele ser cômico e ridículo o tempo todo, ele é um dos genocidas mais monstruosos da animação japonesa — novamente, a virada do meio da série fala muito sobre ele.
***** Mas não vou dar esse spoiler: Gundam the Origin está na Crunchyroll.
****** Isso é fruto dos vaivéns dos bastidores de produção de Gundam ZZ. Originalmente Char Aznable foi pensado para estar lá, mas o tom da série foi repensado e optou-se por fechar o destino do personagem em um longa à parte, Char Contra-Ataca (presente na Netflix). Mas essa informação esclarece muita coisa: na série, podemos ver como a Federação é corrupta até a medula. Tendo isso em mente, dá para entender o retorno de Char à posição de oponente, após ter lutado ao lado de seus antigos inimigos contra uma ameaça maior em Zeta Gundam.
******* Dessler de Garmillas no original e na série nova. Mas a essa altura da minha vida não vou conseguir chamá-lo de outra forma.
******** Parece haver um certo anacronismo aqui — o Patrulha Estelar original é de 1974, anterior à trilogia de Nagahama — mas na primeira série Desslok era realmente uma figura mais vilanesca. No entanto, é revelado que ele tinha um bom motivo para suas ações. Na segunda série, de 1978 (já no mesmo período da trilogia de Nagahama), temos o início de uma humanização que se concretiza na terceira temporada, de 1980. Nessa época, outras séries já investiam em antagonistas mais humanos e com motivos compreensíveis, como o trágico Buff Clan de Space Runaway Ideon.
********* Curiosamente, o próprio Desslok seguiu as duas rotas: no longa Arrivederci, Yamato, uma versão retroativamente alternativa e não-canônica dos eventos da segunda temporada, Desslok se suicida como forma de contrição ao se deixar tragar pelo vácuo do espaço. Mas há vários outros exemplos desses suicídios honrados, normalmente no melhor estilo “o capitão afunda com o navio”.
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