Como falei na semana passada, este blog andou ocupado como parte da divulgação do novo livro básico de BRIGADA LIGEIRA ESTELAR — que, como dito pela enésima vez e vocês, leitores, estão a ponto de me estrangular, está em pré-venda no site da Jambô e na Amazon. Por isso prometi, no artigo da semana passada, trazer alguma das colunas tradicionais desta página para o agrado dos leitores veteranos. No entanto, ainda preciso ser amigável a quem chega.
Assim, trago de volta a seção Dissecando, examinando alguns arquétipos tradicionais de personagens típicos do gênero, e nenhum seria mais adequado para este momento do que o Orelha. Ele é uma conveniência narrativa ambulante: um estranho no ninho, talvez um cadete novato, ou alguém vindo de um local um tanto atrasado, quem sabe alguém descongelado após milênios ou vindo de outra dimensão (o jogo é de vocês, vá saber se o mestre vai aprovar isso)…
…e por isso mesmo ele precisa de explicações constantes, tendo razão para fazer perguntas que, para qualquer outro protagonista, seriam de conhecimento tácito. Mas isso é muito útil: através dessas respostas, o leitor ou espectador é devidamente informado sobre aspectos do cenário sobre os quais a maioria dos personagens em tese já deveria saber. Por isso o uso de estranhos no ninho em velhos livros de ficção científica foi tão comum no passado*.
Por isso, estamos chamando esses personagens de Orelha — eles existem para escutar, e por tabela, transmitir esse conhecimento a quem assiste. Muitas vezes ele é um coadjuvante, mas há protagonistas com esse perfil e em termos de RPG, eles são de uma conveniência absurda tanto para o grupo como um todo quanto para o mestre em particular: suas perguntas respondem com antecedência às perguntas naturais dos demais jogadores. Vamos a alguns exemplos.
Expatriado: apesar da sua competência em combate, seu desconhecimento completo do terreno o deixa vulnerável e ele precisa de alguém capaz de guiá-lo, vide Stig Bernard** (Genesis Climber Mospeada; Scott Bernard em Robotech).
Recém-Chegado: ele chegou agora, está só começando e precisa do apoio de um veterano (ou instrutor) para ajudá-lo a dominar o seu novo papel em um primeiro momento, como Kio Asuno das terceira e quarta fases de Gundam AGE***.
Choque Cultural: ele veio de um local mais atrasado e por isso precisa de explicações. Ele não é um idiota, pelo contrário — procura aprender e o faz como pode. O Bento Marabá de Batalha dos Três Mundos foi pensado assim****.
Agente: ele é um infiltrado, e sua função é a de aprender o máximo sobre o local onde está. Logo, ele fará perguntas, muitas perguntas. Yama (Logan, na versão internacional), do longa Capitão Harlock de 2013, é bem isso*****.
O Sem-Face: funciona sob o conceito, típico do OSR****** em RPGs e de videogames, de “o conhecimento do personagem é o do jogador”. Sua informação virá. Yuu Kajima, de Mobile Suit Gundam Side Story: The Blue Destiny, é assim.
De uma forma resumida, o conceito é simples: ele é alguém que sabe que não sabe, pergunta o que não sabe, aprende o que não sabe — e quando ele passa a saber, nós aprendemos através dele. Ele escuta e isso é ótimo para todos.

Mas qual a vantagem de se jogar com um personagem desses? Não é mais interessante ter um monte de conhecimentos para entrar em ação, ainda mais quando falamos de conhecimentos básicos da ambientação? Sim, é verdade, mas lembre-se: Em BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG, você só tem doze pontos (contando com as desvantagens) para construir seu protagonista*******. Você vai querer ser mais forte em alguma coisa. E para isso, você vai precisar de fraquezas.
Pensem no Ledo, de Suisei no Gargantia. Ele é comparativamente mais poderoso do que todo mundo ao seu redor. Ele tem um robô com inteligência artificial enquanto todos em volta virtualmente dependem do analógico. Mas não sabe porcaria nenhuma sobre como viver em um ambiente marítimo — ele é um Orelha escarrado e cuspido. Daí ele precisar tanto de uma coadjuvante como a Amy, e de quebra ele arrumou uma namoradinha (para lhe ensinar outras coisas).
E isso é muito conveniente porque oferece tanto uma rota de crescimento para o personagem quanto algum motivo para cruzar a linha das regras de vez em quando. Afinal, seu protagonista não sabe de tudo… e o mero senso comum pode ser uma excelente desculpa para sentar o sarrafo em alguém. O Orelha não precisa ser um mero apoio para um protagonista. Isso acontece em outras mídias apenas porque essa é uma desculpa para informar o público — nada mais.
Mas BRIGADA LIGEIRA ESTELAR é um RPG — e esta é uma mídia diferente, com suas próprias necessidades. Nele, vocês e os demais jogadores são coprotagonistas. Procurem sempre ter isso em mente. Não há sentido em se ter um coadjuvante na cola fazendo perguntas as quais nem sempre vocês saberão responder. A banda toca no sentido contrário por aqui: podem perguntar e algum personagem do mestre vai responder. Confiem.
Até a próxima e divirtam-se. Sempre.
* Um exemplo acessível a todos é o Pedra no Céu, romance de estreia de Isaac Asimov e já resenhado por aqui, mas na verdade, esse era um expediente imensamente comum nos livros de ficção científica da época. Para evitar estranheza para o cenário, frequentemente tínhamos um preâmbulo em nosso tempo (como na Legião do Espaço de Jack Williamson, que iniciava com alguém no século XX dizendo que podia prever o futuro e trouxe essa aventura à baila. Depois… bom, depois isso era completamente esquecido e ninguém retornava ao assunto).
** Oferecendo algum contexto: no futuro, os alienígenas Invid invadiram a Terra e as últimas forças de resistência fugiram para Marte, continuando a combater os invasores no espaço. Stig Bernard foi criado no planeta vermelho, mas por lá, infere-se pelos detalhes que a estrutura era ordenada e militarizada, em nome da sobrevivência. Na Terra, a coisa virou faroeste e era preciso um certo senso de malícia para sobreviver, e quando ele ficou ilhado em nosso planeta…
*** Kio foi treinado através de videogames pelo avô Flit. Ele se percebeu um exímio piloto na base do susto, mas não tinha treinamento de guerra nem um real conhecimento técnico das máquinas as quais pilotava. Daí seu treino com Shanalua. É bom dizer que Age tinha a pretensão de transmitir os conceitos básicos de Gundam para um público infantil e ela chegava ao ponto de dizer a Kio que não se deve ficar empolgado por destruir um inimigo, afinal ele também era um ser humano. É bem claro que o protagonista da vez estava servindo como um avatar do espectador mais jovem.
**** Bento Marabá surgiu com o primeiro artigo sobre BRIGADA LIGEIRA ESTELAR para a extinta revista Dragonslayer. A ideia era justamente essa, um personagem inexperiente, vindo do interior mais afastado, mas com muito espaço para aprendizado. Eu acabei gostando dele e no final, ele voltou no primeiro volume de Batalha dos Três Mundos, com uma personalidade melhor definida.
***** O Yama/Logan é uma espécie de substituto espiritual do Daiba das séries mais antigas, mas tem como diferencial o fato de ser um agente infiltrado que acaba tomando o partido daqueles aos quais espionava.
****** Old School Renaissance. Vertente dos jogos de RPG que busca recuperar a experiência dos RPGs mais antigos, especialmente os do final dos anos 70.
******* Mais especificamente, dez pontos de personagem e dois pontos negativos em desvantagens. Doze ao todo, portanto.
NO TOPO: Suletta Mercury (Mobile Suit Gundam: The Witch from Mercury) — podem reparar, tudo acontece porque, quando ela chegou, não tinha ideia nenhuma das regras e acabou ganhando uma esposa por acidente; Shinji Ikari (Neon Genesis Evangelion) — basta lembrar o quanto de perguntas ele foi fazendo enquanto relutava entre entrar em um robô, e o quanto lhe foi explicado ao longo de boa parte da série; Kio Asuno (Gundam Age), que foi um orelha por boa parte da série, tanto durante seu treino nas mãos de Shanalua Mullen quanto durante seu período com os Vagan, na órbita de Marte; Ledo (Suisei no Gargantia), vindo do espaço para um planeta Terra inundado; Asemu Asuno (Gundam Age), este um orelha momentâneo, em seus tempos iniciais como piloto (prestem atenção no capítulo 19); Tadashi Daiba (Capitão Harlock, versão de 1978); Flit Asuno (Gundam Age), novamente de forma momentânea nos primeiros capítulos — prestem atenção nos capítulos 2 e 3 quando a menina Yurin L’Ciel explica a ele seus poderes Newtype, digo, X-Rounders, com uma clareza que nunca vi nas séries normais sobre o assunto; Yama (Capitão Harlock, longa de 2013); China Kousaka (Gundam Build Fighters; eu sei, estou trapaceando, mas ela é muito exemplar em seu papel de Orelha); Watase Aoba (Buddy Complex), um protagonista viajante do tempo que encontra na coadjuvante Mayuka Nasu uma voz conveniente para explicar todo o necessário; Kamiki Sekai (Gundam Build Fighters Try), um Orelha ainda mais evidente; Renton Thurston (Eureka Seven); Momoka Yashiro (Gundam Build Divers), uma garota que veio do clube de futebol, é iniciada pelos demais e se torna mais forte de forma completamente colateral, já que ela está mais interessada em deixar seus robôs de combate bonitinhos — aliás, as séries Gundam que se valem desse recurso costumam ser justamente as mais infantis, podem reparar; Nagate Tanikaze (Knights of Sidonia), criado de forma isolada e sem conhecer as regras da nave Sidonia; Yuu Kajima (Mobile Suit Gundam: Blue Destiny), um personagem de videogame que… bem, é um nome e uma face para o jogador, nada mais, sendo um bom exemplo para o Sem-Face; Noriko Takaya (Gunbuster), uma recruta bem típica sendo ensinada sobre o sistema de treinamento espacial, a física relativística (dilatação temporal) e a guerra contra os monstros espaciais; Stig Bernard (Genesis Climber Mospeada), um personagem com alta capacidade de combate e baixíssimo jogo de cintura para sobreviver em uma Terra da qual ele não sabe nada, precisando de um coadjuante útil para explicar-lhe o necessário; Ange (Cross Ange), retirada de seu meio de origem e sendo forçada a se juntar ao combate contra os Dragões — é bem óbvio que esta personagem precisaria ser uma orelha em algum grau dentro de uma trama dessas; Kaname Chidori (Full Metal Panic!) é uma coadjuvante de peso na série (em termos de 3DeT, uma Protegida Indefesa), arrastada para um mundo de espiões, organizações secretas, robôs gigantes e supertecnologia. Sua existência traz um motivo orgânico para explanações, já que obviamente o protagonista não precisa disso; Romelle (Voltron, o Defensor Lendário), oscilando entre os opostos de ser tanto uma personagem orelha quanto uma fonte de textos espositivos de acordo com a necessidade narrativa (e cá entre nós, para lembrarmos justamente dela, é porque estamos apelando pra rapa do tacho).
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Meu primeiríssimo personagem de RPG foi um Goblin Duyshidakk que perguntava sobre tudo por ser de outro continente.
Adorei a sacada de deixar os nomes dos personagens e das obras como link para os outros artigos. Você está se virando muito bem no papel de ser receptivo com os novatos.