Revisitando Tons Narrativos: o Épico

Fechando nossa revisitação dos tons narrativos (árido, aventuresco, heroico, folhetinesco e épico) de modo mais esquemático e prático para os novatos em BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG — lembrando que já fizemos repescagens dos tons Árido (AQUI), Aventuresco (AQUI), Heroico (AQUI) e Folhetinesco (AQUI). Agora chegou a hora de nos voltarmos ao tom Épico. E, se temos uma boa definição do seu diferencial em relação aos demais, diz respeito à sua escala.

A ameaça no tom épico nunca é pequena. Para os fãs de fantasia medieval entenderem melhor, comparem, digamos, o bárbaro Conan com o Senhor dos Anéis. O primeiro conceitualmente se ajusta ao mata-monstro em um labirinto com um feiticeiro evocando uma ameaça mais perigosa no final. O segundo é uma mega-jornada, onde pessoas pequenas* em relação ao tamanho da ameaça se armam de coragem — e passam por sacrifícios — para vencer um horror monstruoso**.

A questão é de escala. Encontramos esse tipo de paralelo em diferentes gêneros: compare a Crise nas Infinitas Terras original com o seu quadrinho padrão do Super-Homem, por exemplo***. As apostas são maiores, acima de qualquer questão ou interesse entre os envolvidos. É hora de deixar diferenças de lado: elas podem esperar e vocês não precisam virar amiguinhos depois disso, até porque pode não haver um depois. Há urgência. Mas vamos aos detalhes.

De um modo geral: é transformar o impossível em possível para se vencer o invencível, e ele será monstruosamente gigante. Esqueçam glória, idealismo ou sobrevivência pessoal: é sobre garantir que tudo o que conhecemos não seja destruído. Os protagonistas podem ser pessoas comuns, mas agora são os únicos que podem carregar o fardo de salvar um mundo, um sistema solar ou toda a Constelação do Sabre. E isso vale qualquer custo. Até mesmo suas vidas.

Em termos de regras do BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG, este tom opera no seu limite. Os personagens podem começar normalmente, mas o foco não está apenas no poder individual, e sim em seu crescimento paulatino rumo ao clímax. As regras de customização e uso de tepeques são centrais, representando a busca por recursos lendários para enfrentar a ameaça. O mestre deve ser flexível para permitir proezas incríveis, mas o coração do Épico está na jornada.

A Ameaça Final é o Começo de Tudo: as apostas envolvem a destruição ou salvação de civilizações inteiras, sistemas solares ou até a própria realidade — enfim, elas sempre são altas****. O inimigo é frequentemente apocalíptico de alguma forma. Percebemos o perigo com antecedência, dando aos protagonistas sua única vantagem: tempo para empreender uma busca pela solução, porque agora a ameaça não pode ser vencida. Muito menos por novatos como vocês.

A Ameaça JÁ Gerou Obstáculos: o perigo épico é o motor da trama, não um personagem principal. Ele deve ser feito através de seus efeitos diretos ou indiretos, não exposto constantemente. Isso evita sua banalização e abre espaço para as tramas de escala menor que são a alma da campanha: perseguições, alianças improváveis, a descoberta de “falsos tesouros”. Todas estas subtramas se entrelaçam e preparam os protagonistas para o confronto final*****.

Há uma Chance (por mais remota que seja): A derrota seria certa, não fosse uma lenda, uma arma perdida da era do Grande Vazio, um princípio científico esquecido — alguma esperança, enfim. A campanha é a busca por essa chance. Os heróis não partem para destruir uma superarma com unhas e dentes, isso não adiantará de nada e só os fará morrer em vão; eles partem para encontrar a arma ou ponto fraco que talvez lhes dê uma ferramenta para enfrentá-la.

Seja Humano: O contraste é fundamental. Para cada ameaça apocalíptica, deve haver dramas humanos igualmente poderosos. A timidez do artilheiro ao falar com a enfermeira, o navegador que quer desesperadamente voltar a ver sua família, a rivalidade interna que vira amizade sob pressão. São esses pequenos momentos que lembram os motivos pelos quais os personagens lutam, evitando que a campanha se torne um jogo abstrato de combates atrás de combates.

Gunbuster (Aim for the Top! Gunbuster): a definição de “jornada contra a impossibilidade”. A humanidade enfrenta inimigos interestelares absurdamente superiores. A resposta não é só um robô mais forte, mas sacrifícios humanos inimagináveis e o uso de conceitos de física real como dilatação temporal, onde meses para os pilotos são décadas para a Terra, para criar um peso emocional devastador. A escala é cósmica, mas o drama é profundamente humano.

Tengen Toppa Gurren Lagann: leva o conceito ao extremo. Começa com a humanidade em cavernas e termina com galáxias sendo arremessadas como shurikens. É a espiral ascendente de superação personificada e uma coda metalinguística da história do gênero, onde a força de vontade literalmente quebra as leis da física. Ameaça? O Anti-Spiral quer impedir a evolução da vida em todo o universo para evitar sua destruição. Não dá para ser mais épico que isso.

The King of Braves GaoGaiGar Final: antes de Gurren Lagann, houve Gaogaigar! Última e melhor série da franquia Yuusha****** e uma resposta reconstrutiva a animes como Neon Genesis Evangelion, a saga conclui de forma épica (e controversa*******) em oito OAVs que podem ser assistidos de forma algo independente da série original, sem problemas. A ameaça, os 31 Primevos, transcende a própria realidade e a batalha decidirá o destino de toda a criação!

Patrulha Estelar: já era esperado esse exemplo, mas vale a pena acompanhar sua evolução. Reparem o quanto os protagonistas são humanos, demasiadamente humanos no começo, mas vão gradualmente encontrando ameaças de escala e poderes cada vez maiores ao longo de cada série. E isso também se mostra em sua evolução — talvez sejam necessários sacrifícios mas, diacho, um piloto pode destruir uma mega-arma geradora de buracos negros com um caça espacial!

Construa a Ameaça: apresente-a através de seus efeitos. Mudanças climáticas, transmissões do espaço profundo, desaparecimento inexplicável de naves. Faça-a grande, distante e misteriosa. A revelação total deve ser impactante!

A Jornada, não o Objetivo: faça de sua campanha uma sucessão de arcos menores (uma “jornada pendular”). Cada arco corresponde aqui a um passo, os aproxima do objetivo e os apresenta a aliados, inimigos menores e complicações.

Mantenha o Foco Humano: intercale grandiosidade sci-fi com dramas intensos. Um romance entre dois pilotos, a rivalidade com um mercenário, a dúvida do líder, a saudade de casa… Esses momentos farão os jogadores se importarem.

A Única Chance: o confronto final não será convencional. A vitória virá de usar a chave para derrotar o último chefe da forma correta, mesmo se sacrifícios forem necessários. Todos os combates foram apenas para chegar até lá.

Sua Lenda Começa Agora: seu personagem não é um homem comum, ele só não sabe disso ainda. Ele será lembrado no final como o “Portador da Espada Solar”, o “Piloto Fantasma da Lenda” ou algo que o valha — pense mitologicamente.

Tenha um Papel Específico na Sua Missão: Você não precisa ser o melhor piloto. Pode ser o estrategista, o negociador, o especialista que decifra a tecnologia ancestral. Encontre o seu nicho na equipe salvadora da Constelação.

Tenha Algo Importante a Perder: seu personagem precisa de fortes ligações com o mundo — família, amigos, um amor, um sonho, seus ideais… Essas coisas serão ameaçadas pela escala gigante da ameaça e farão você lutar até o fim.

Supere Seus Limites: A frase “Isso é impossível!” não é uma declaração, é um desafio. Seu personagem deve acreditar que pode quebrar qualquer limite, seja físico, mental ou tecnológico, pela força de sua vontade. Apenas faça!

A natureza de um épico não está apenas no tamanho dos robôs, naves ou da própria ameaça em si, mas também na jornada de escalonamento. Os heróis começam em um nível bem prosaico e, a cada arco, a ameaça e a escala de poder só aumentam. Mas isso também vale para as capacidades dos protagonistas! E isso não muda o peso da ameaça final, mesmo quando não a notamos ainda. Na verdade, só a percebemos, a princípio, pelas consequências de sua existência…

…até um momento no qual tudo explode. Ciberferas se voltam contra pessoas? A ameaça final pode ser uma força extra-dimensional cuja energia evolui animais em seres bio-mecânicos. Guerra de facções no espaço? Pode ser o primeiro sinal de uma invasão interestelar que vai exigir a união de planetas inteiros para ser detida. Uma campanha épica não se trata apenas de vencer. Trata-se de merecer vencer. E isso exige esforço.

Até a próxima e divirtam-se.

* Aliás, o uso de personagens como Hobbits e Anões ajudam a reforçar alegoricamente a ideia.
** Convenhamos, na prática Sauron era um demônio e todos viram como sua vitória mergulharia o mundo em trevas.
*** Para deixar mais claro: nas histórias do Super-Homem, deter um asteróide de dois quilômetros capaz de destruir o mundo é apenas uma terça-feira a mais para o personagem. Mas na Crise nas Infinitas Terras, falamos de um ser que destrói universos inteiros para se tornar mais e mais poderoso em escala cósmica, exigindo a cooperação de todos os heróis e vilões de todos os tempos, de todos esses universos, para deter a ameaça… e morrem muitos, muitos deles no processo. Dificilmente teremos uma história de super-herói mais épica do que isso.
**** Temos vários exemplos disso nos animes, como o Getter Emperor de Getter Robo, cuja ameaça é a culminação de um processo que começou… dentro de casa, ou mesmo a Crise do Sol, na terceira temporada do Patrulha Estelar original.
***** E falando nessa temporada de Patrulha Estelar, esse entrelaçamento se deu de forma bastante engenhosa (aviso de spoilers): a fissão nuclear do Sol, que está transformando-o aceleradamente em uma supernova, foi causada por um gargantuesco míssil destruidor de planetas extraviado da guerra entre duas forças antagônicas — o novo Império Galman-Gamilon e a Federação Bolar. Isso entrelaça, ao menos em um plano narrativo e simbólico, as duas ameaças. Então os sinais pelo caminho não são nada relacionado ao Sol, que está paulatinamente caminhando para a destruição lá no nosso sistema solar, mas as forças de uma nação interestelar ou de outra encontrada pelo caminho, até porque o desastre solar aconteceu por causa deles. Quando os personagens encontram um equipamento capaz de reverter a situação do Sol, retornam para a Terra, mas quem os espera por lá? Os inimigos feitos pelo caminho, com canhões geradores de buracos negros temporários. ELES são o último obstáculo para ser vencido, o chefe final, antes de se simplesmente disparar a arma e salvar a humanidade. Percebem como isso amarra tematicamente a questão? Acabar de uma vez por todas com a guerra, a verdadeira ameaça, é salvar nosso planeta!
****** Também conhecida como “Brave”. Era uma franquia infantil de robôs gigantes da Sunrise em parceria com a empresa de brinquedos Takara, inicialmente calcada em Transformers, mas que com o tempo desenvolveria sua própria personalidade. Durou de 1990 a 2000.
******* A explicação é longa: a franquia Yuusha foi desgastada pelo fracasso comercial de Brave Command Dagwon e pelos anos de arranca-rabos nos bastidores entre os interesses comerciais da Takara e as vontades criativas da equipe da Sunrise. Gaogaigar foi pensado como o mega-épico em grande estilo para reconquistar o interesse infantil para as séries Yuusha — e, acreditem, eles chutaram o balde, especialmente a partir da segunda metade da série. O que ninguém esperava foi a explosão de uma nova série para o segmento que estreou naquele ano, um tal de Pokemon, vocês conhecem? O fenômeno midiático dos monstrinhos de bolso magnetizou as crianças naquele ano e os brinquedos de Gaogaigar encalharam, acabando de vez com a paciência da Takara, que puxaria o plugue do acordo. Porém, a série vendeu muito bem em DVD, para a alegria da Sunrise: uma pesquisa revelou que Gaogaigar caiu nas graças de um público adulto, em um dos primeiros sinais claros de um mercado de nostalgia, e foi decidido fazer uma bombástica série final de OAVs, concluindo a saga. Mas aí veio o grande erro: eles agradaram a adultos sim, mas a adultos insatisfeitos com os rumos sombrios do gênero após o megasucesso de Neon Genesis Evangelion. A Sunrise não captou esse detalhe e eles criaram uma série voltada a espectadores maduros, mais sensual e violenta, desagradando esse mesmo público. Até há quem prefira esse material, mas no geral essa sequência de desencontros foi ruim para todo mundo.

DISCLAIMER: The King of Braves GaoGaiGar pertence à Bandai Namco Filmworks, Inc.; Gunbuster é propriedade de Khara, Inc.; Tengen Toppa Gurren Lagann pertence à Trigger, Inc.; Patrulha Estelar (Uchuu Senkan Yamato) é propriedade de Nishizaki Co., Jp.. imagens para fins jornalísticos e divulgacionais, de acordo com as leis internacionais de Fair Use.

Brigada Ligeira Estelar ® Alexandre Ferreira Soares. Todos os direitos reservados.

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