Revisitando Tons Narrativos: o Folhetinesco

Voltamos à nossa revisitação dos tons narrativos (árido, aventuresco, heroico, folhetinesco e épico) de uma forma mais esquemática e prática para jogadores novatos em BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG. Já voltamos ao Árido (AQUI), ao Aventuresco (AQUI), e ao Heroico (AQUI), e agora, nosso próximo passo é sem dúvida o Folhetinesco. Que, ao contrário dos anteriores, não é exatamente uma evolução do Heroico — eu o vejo mais como uma bifurcação de caminho.

Explicando melhor, se o Heroico mostra os personagens capazes de feitos maiores, em cenas de ação espantosas… elas até podem acontecer por aqui, sim, mas têm menos a ver com potência física do que com a mais poderosa defesa conhecida para qualquer personagem: a armadura de roteiro*. Aqui, o exagero não só é permitido como é obrigatório — com vilões canastrões, revelações bombásticas e o realismo mandado às favas em nome da conveniência dramática.

Aqui, a lógica serve ao drama, e não o contrário. É outra forma de evolução a partir do Aventuresco. Se o Heroico é cinematográfico, o Folhetinesco é novelesco (falamos longamente desse aspecto em um artigo de três partes, AQUI, AQUI e AQUI) e não tem pudor nenhum em tirar algum evento absurdo da cartola se for para movimentar as coisas. Porque elas não podem ficar paradas nunca. Mas se o mestre pode fazer isso em jogo, os jogadores também podem…

Aqui nós trabalhamos com o arquetípico mesmo, bem e mal, embora ele possa ser carregado com tintas ambíguas para não dar tanto na cara. Ele também trabalha com uma estrutura voltada a, antes de mais nada, manter a atenção do leitor, espectador, ouvinte ou o que for — a qualquer custo. Daí tantas reviravoltas teatrais, golpes de ação, revelações surpreendentes… e temos um terreno de suspensão da lógica em nome do efeito**. Aqui, o dramático é lei.

Em termos de regras do BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG, estimule os jogadores a criar situações nas quais eles possam “farmar” pontos de valor: comprar briga com um esquadrão rival no bar, seduzir uma moça para ela não gritar quando você se esconde em sua sacada, qualquer coisa. A cada ponto de valor acumulado, dê a eles um PA temporário, que dura até o fim da sessão! Quanto mais conseguirem, mais poderão esbanjar! Eles vão precisar desses PA extras!

Exagero Melodramático: as emoções são amplificadas ao máximo. Ódio, amor, traição e sacrifício não são nuances — são forças motrizes primárias que ditam cada ação. As cenas de confronto são carregadas de discursos passionais.

Conveniência Dramática: o mundo conspira a favor do enredo. Coincidências incríveis acontecem, inimigos revelam seus planos por monólogo e peças-chave aparecem exatamente quando necessário. O realismo é um convidado opcional.

Ganchos Dramáticos: cada sessão deve terminar com um gancho que deixe os jogadores ansiosos pelo próximo capítulo. Um personagem é dado como morto? Ele voltará! Um novo vilão surge no último segundo! Reviravolta? É obrigação!

Arquétipos, não Nuances: isso já acontece no Heroico… mas aqui, é escancarado! Os personagens são definidos por papéis dramáticos bem claros: O Herói Justiceiro, O Rival Honrado, A Dama em Perigo, O Vilão Cínico e Traiçoeiro…

Mobile Fighter G Gundam: um exemplo espetacular de folhetinesco! Os elementos políticos tradicionais da franquia até estão embutidos lá***, mas tudo vem sob um tratamento de Battle Shōnen****, com personagens marciais sempre em busca do mais forte, discursos inflamados e ataques nomeados, gritados a plenos pulmões (“Shining Finger!”). Tudo em meio a uma mega-trama de vingança cheia de reviravoltas e revelações, sem descuidar do sci-fi (bem over)!

Code Geass: uma aula moderna de folhetim. Lelouch é um prodígio cujos planos são mirabolantes, cheios de reviravoltas, identidades secretas e golpes dramáticos. A série não tem medo de ser excessiva em sua trama. Os personagens são arquetípicos e passionais, coadjuvantes dados como mortos voltam mais tarde e os lados são bem claros (convenhamos, depois daquele massacre do primeiro episódio, há alguma dúvida de que o Império Britânico é o “mal”?).

Cross Ange, Rondo of Angel and Dragon: eu sei, mas essa obra é folhetinesca para caramba. A série é uma montanha-russa de reviravoltas absurdas. Traições, alianças improváveis, viagens no tempo, vilões que mudam de lado toda hora e vários episódios onde temos uma revelação para bagunçar o coreto. É excessiva, polêmica e deliberadamente melodramática em cada canto, priorizando constantemente choque e drama contra toda lógica narrativa consistente.

I’m the Evil Lord of an Intergalactic Empire: apesar de seus elementos épicos*****, ele berra o folhetinesco! A série funciona sob conveniência dramática máxima — Todos os atos vilanescos do protagonista dão incrivelmente certo e o fazem parecer um herói bondoso. A série brinca com os arquétipos (o “Lorde Maligno que na verdade é bom”, “O Cavaleiro leal”, etc.), mas eles são a base de toda a sua caracterização, outra marca registrada do folhetim.

Abrace os Clichês, Não os Evite: utilize todos os tropos mais manjados — com convicção. O nobre vilanesco deve ter uma risada maligna, a inimiga se apaixonou por um dos heróis, tudo isso. Não tenha pudores, não nesse sentido.

Seja Rocambolesco: sempre termine a sessão em meio a uma crise. O robô de um jogador está prestes a explodir, o aliado revela ser um traidor, um meteorito misterioso se dirige à base. Mantenha-os ansiosos pela próxima sessão.

O Drama Acima de Tudo: se alguma regra impedir um momento dramático incrível ou comprometer a trama maior, ignore-a ou trapaceie — depois você explica******! Seus jogadores vão agradecer por isso mais tarde, pode ter certeza!

Crie Vilões Recicláveis: Seu grande vilão foi derrotado? Ótimo! Sua ex-amante, sedenta por vingança e ainda mais cruel, assume o comando… isso se ele não tiver um irmão gêmeo para ocupar seu lugar. Chute logo o balde.*******.

Seja Arquetípico: você não é um protagonista tão complexo; você é “O Justiceiro Silencioso”, “O Playboy com Coração de Ouro” ou “A Órfã que Descobre ser Herdeira de um Trono”. Aceite e explore esse arquétipo com tudo que tem.

Canastrice é Diversão: grite o nome do ataque especial de seu construto. Faça discursos sobre seus ideais e confronte seu rival com palavras duras e dramáticas. Interpretação é parte importante do que faz esse conceito legal.

Valorize os Laços Dramáticos: sua relação com os coadjuvantes (e demais protagonistas) é o combustível da trama. Tenha um amigo pelo qual faria qualquer coisa, um rival que você respeita mas precisa superar, um amor proibido…

O Poder do Protagonismo: seu personagem pode, e deve, escapar de situações impossíveis porque sua história ainda não acabou. Use seus pontos de ação, peça ajuda ao Mestre… e aproveite para criar aquela cena milagrosa de fuga.

Um ponto a se ressaltar é a sensação de que qualquer coisa pode acontecer, e o mestre deve incorporar os percalços da campanha a seu favor. Aqui, não vou usar um anime como exemplo, mas uma telenovela. Em Selva de Pedra (1972), de Janete Clair, o protagonista tentaria matar a esposa para poder se casar com uma mulher rica, mas ele se vê incapaz disso… e desiste. Só que ela sofre um acidente e sobrevive — pensando que realmente ele tentou matá-la.

O plano era fazer com que ela adotasse uma nova identidade e planejasse a destruição do protagonista, mas a censura da ditadura militar vetou porque isso configuraria bigamia (a lei do divórcio só foi aprovada em 1977). Janete Clair, cheia de jogo de cintura, encontrou a solução: sentindo culpa pelo acidente que “matou” sua esposa, ele simplesmente deixa a mulher rica no altar. Com isso, passamos a ter DUAS arqui-inimigas tramando sua destruição.

Isso é muito folhetinesco — e também muito RPG. Pensem bem: por conta de um mau passo, ele vai passar o resto da telenovela sob o fogo cruzado de duas mulheres vingativas (e com meios para tornar sua vida um inferno) que nem estão tão cientes uma da outra. E ele é o protagonista ali, lidando com as consequências de seus atos. Obviamente ele vai encontrar uma saída (é uma novela, afinal) e, em jogo, os jogadores precisariam resolver essa lambança.

No final, deu para entender como essa abordagem pode blindar (até certo ponto) os protagonistas, mais do que quaisquer números frios amontoados em uma ficha de personagem. É claro, o risco ainda precisa existir, mas é possível driblá-lo com inteligência. Lembra da antiga vantagem de Vida Extra do 3DeT Alpha? Para os demais, seu protagonista morreu… MAS!

Na próxima e última parte dessa série, voltaremos com o Tom Épico. Até a próxima e divirtam-se.

* O popular Plot Armor. Mas não vejo motivo para usar o nome em inglês aqui.
** Curiosamente, os dois melhores exemplos de como essa mecânica de suspensão de descrença funciona, para mim, vieram novamente das telenovelas. Em Brega e Chique (1987), do grande Cassiano Gabus Mendes (repararam que deixei um agradecimento para ele no primeiro Brigada Ligeira Estelar de 2012?), o personagem de Jorge Dória tinha duas identidades e… duas esposas. Para evitar ser pego em meio a uma falência, ele foge para o exterior e, após uma plástica, volta com uma terceira nova identidade e passa a ser interpretado pelo… Raul Cortez. Basta comparar os dois e ver o quanto isso é absurdo, mas tendo uma explicação simples — é uma cirurgia plástica, droga — aceitamos tudo muito bem e bola para a frente. O interessante é que um recurso similar foi trazido para resgatar um ator na vida real: em Império (2014), do Aguinaldo Silva, a atriz que interpretava a principal vilã, Drica Moraes, teve problemas de saúde e até esteve ausente de alguns episódios por causa disso. Quando ficou claro que ela não poderia continuar, a solução mais óbvia deveria ser inventar uma desculpa para remover a personagem, forçando toda a equipe a reescrever semanas inteiras de roteiros. Mas o Aguinaldo não se apertou: ele convocou Marjorie Estiano, a atriz que interpretou a personagem de Drica na primeira fase da novela, que se passava vinte anos antes (e que obviamente é bem mais jovem do que Drica), fazendo a vilã em questão retornar do sumiço após… ter feito uma cirurgia plástica que a fez parecer vinte anos mais nova. É muita cara de pau? Completamente. Mas é o tipo de coisa que tem toda a cara do folhetinesco, podem confiar.
*** Os Pilotos da Gundam Fight são sujeitos aos mandos e desmandos de autoridades de seus países, e o episódio 7 (envolvendo o famigerado Tequila Gundam) é um excelente exemplo disso.
**** Os tradicionais animes ou mangás Shōnen de luta que costumam ser os maiores sucessos dentro dessa demografia.
***** Mais especificamente a escala dos combates e do poder de fogo apresentados na série.
****** SPOILER DE BELONAVE SUPERNOVA, LEIA POR SUA CONTA OU RISCO: lembra de quando os personagens finalmente (acham que) eliminam Dom Refrega, só para ele aparecer posteriormente? Talvez os jogadores se sintam meio roubados, mas a explicação não apenas está lá como é pertinente para a trama principal.
******* Eu incluiria nisso aquelas ressurreições absurdas que volta e meia acontecem em obras folhetinescas. O personagem caiu no vulcão, mas era um vilão bom demais para jogar fora? Ele reaparece, contando uma história altamente mirabolante sobre como sobreviveu à queda. Um dos vilões mais infames da literatura do século XIX, o Sir Williams da série de folhetins Rocambole, de Ponson du Terrail, foi confrontado por suas vítimas em um barco, cegado, desfigurado por vitríolo, teve a língua cortada e atirado no meio do oceano para morrer. Mas ele reaparece no livro seguinte com um novo plano para destruir a vida dos protagonistas: aconteceu dele ficar à deriva no oceano, parar em uma misteriosa ilha no meio do nada, ser acolhido pelos nativos, que tinham técnicas milagrosas e…

DISCLAIMER: Mobile Fighter G Gundam, Code Geass e Cross Ange: Rondo of Angel and Dragon pertencem à Bandai Namco Filmworks, Inc.; I’m the Evil Lord of an Intergalactic Empire! é propriedade de Yomu Mishima, via Quad/Kabushiki-gaisha JFK e ANN (ABC, TV Asahi), AT-X; imagens para fins jornalísticos e divulgacionais, de acordo com as leis internacionais de Fair Use.

Brigada Ligeira Estelar ® Alexandre Ferreira Soares. Todos os direitos reservados.

5 comentários

  1. Deixando aqui como menções honrosas os animes de mecha Voltes V e Tosho Daimos. O primeiro foi o santo de batismo do Real Robot (pense na menininha que descobre ser uma princesa, mas com três moleques largando o murro em quem ficar no caminho) e o segundo dobra à aposta de tudo que o primeiro estabelece (ele foi cancelado por ser novelesco DEMAIS e o público feminino suplantar o masculino).

    E também a série de jogos Kingdom Hearts. Se tem um jogo contemporâneo que abraça o Exagero Melodramático e o “Se esquivar das regras em nome do drama” é ESTE! A Disney sabia muito bem o que estava fazendo!

  2. E mais três Battle Shonen pra lista de Folhetinescos: Yu-Gi-Oh, Cavaleiros do Zodíaco e Jojo’s Bizarre Adventure. Ambos os três tem o maniqueísmo POR DEFINIÇÃO e contrastam a passionalidade dramática com as reviravoltas inesperadas, inversões, surpresas, etc.

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