Aonde Estão os Alienígenas?

Quando eu estava elaborando o cenário, quis evitar algo sempre incômodo para mim nos materiais ocidentais de RPG voltados a emular uma sci-fi tipicamente nipônica, apresentada a nós através de animação — a tendência de hibridizá-lo meio desastradamente com uma space opera padrão, gerando um produto meio barro, meio tijolo… e quebrando a imersão esperada. Em cenários mais antigos, temos até reptilianos no comando de robôs gigantes. Isso não desce.

Claro, isso não significa escravizar-se pelas referências originais e abandonar qualquer senso de identidade. O Eduardo Dupim, do RPGista, fez um bom artigo (AQUI) sobre como a experiência latino-americana moldou Brigada Ligeira Estelar, sem romper com os tropos do gênero — na verdade eles puxaram essa abordagem naturalmente. Política faz parte do real robot e provavelmente, se esse esforço fosse deliberado, eu não o faria com a mesma eficiência.

Da mesma forma, a hibridização bem-pensada pode dar bons frutos. Megas XLR é uma transcrição cultural total, catando espertamente cada elemento e instalando seu antípoda ocidental: um jovem “perdedor” toma um super-robô gigante e defende o planeta. No Japão, o “perdedor” ainda faz parte de uma sociedade com estrutura de bem-estar social e projetos coletivos — apenas é o lobo ômega da matilha e apanha todo dia — se não dos demais, da própria vida.

Linebarrels of Iron: um ***** (made in Japan) tem sua vida mudada
quando o acaso o torna piloto de robô gigante para proteger a Terra.

Mas o “perdedor” em Megas é um nerd white trash saído de algum filme indie do festival de Sundance. Todas as referências partem dessa premissa: “aqui seria assim”. Outro exercício criativo interessante é o do Lancer RPG: ele reelabora o gênero mecha como se este tivesse nascido da ficção científica ocidental*, citando autores como Ursula K. Le Guin (A Mão Esquerda da Escuridão), Ann Leckie (Justiça Ancilar), Dan Simmons (Hyperion). Isso é válido.

Tanto Megas quanto Lancer vendem propostas específicas e por isso funcionam. Mas quando o peixe vendido é “você está no seu próprio anime de mechas”, certos princípios precisam ser bem pensados. Por isso vamos nos focar no elemento dos aliens: eles não são estranhos ao gênero ou à ficção científica japonesa porém, aqui, seguem suas próprias regras e, também, não são uma impossibilidade em Brigada Ligeira Estelar — mas são realmente uma boa ideia?

Megas XLR: um ***** (made in United States) tem sua vida mudada
quando o acaso o torna piloto de robô gigante para proteger a Terra.

Domesticação Cultural

A ficção científica já era presente no Japão antes da II Grande Guerra** mas duas bombas atômicas e sete anos de ocupação estadunidense mudaram sua natureza: esse período e as décadas seguintes trouxeram muita produção cultural ocidental para o país… ficção científica inclusa: o Japão abraçou a indústria para se reconstruir e tal discurso criou um solo fértil para o gênero. No entanto, há uma tradição local em domesticar influências estrangeiras.

Estamos acompanhando essa domesticação em primeira mão no gênero dos super-heróis clássicos, em obras como My Hero Academia e One Punch Man (prestem atenção em suas estruturas organizacionais e rankings de desempenho). A space opera, por sua vez, já chegou a nós domesticada: os inimigos dos protagonistas nas grandes sagas espaciais japonesas tendem a ser humanos ou alienígenas igualmente humanos, com detalhes cosméticos para torná-los exóticos***.

Os Galveston de Armored Fleet Dairugger XV: pele roxa, olhos vermelhos… não é preciso
mais nada e isso não os torna horrendos (embora esses olhos sejam perturbadores)

Isso não é incomum: no Jornada nas Estrelas clássico, os aliens são humanos (e não seres estranhos como os de Guerra nas Estrelas) por um motivo simples: economia****. Mas em animação, isso nunca foi um problema… e mesmo assim, eles tendem a ser meros humanos de pele colorida*****. Talvez tenham algum apêndice extra (chifres nos Boazanianos de Voltes V, asas nos Baams de Tōshō Daimos) mas, de resto, são totalmente humanos — e o motivo é cultural.

Enquanto os Estados Unidos se construíram culturalmente como “a norma”, fazendo sempre do inimigo “o outro******”, os japoneses cultivam um senso de competitividade movido pela identificação com o adversário. É preciso se igualar antes de superá-lo em seus próprios termos******* e, por isso, raramente alienígenas são seres monstruosos nos animes — eles não despertam identificação. Ah, sim — temos também um importante elemento extra nessa equação…

A franquia Macross é useira e vezeira em se tratando de, hum, contatos imediatos
de alto grau entre alienígenas bonitinhas e humanos bobocas. Vocês entenderam.

É sexo, amiguinhos. 

Sexo é coisa da vida e vende. Não, não venham me falar de fanservice, objetificação e tudo o mais — mesmo o mais inócuo namorinho de portão traz sua sombra (para onde isso vai dar, afinal?). Todos queremos ver gente bonita em nossa frente… e temos a fantasia de estar com alguém assim, seja lá quais forem sua orientação ou gostos particulares. Tendo isso em mente, ele não é o maior motriz de melodrama novelesco existente à toa.

Repararam em um detalhe simples? Quando o inimigo alienígena é monstruoso demais, muitas vezes o elenco pode se tornar mais sexualizado como uma forma de… compensação — peguem o Tropas Estelares cinematográfico do Paul Verhoeven ou a franquia Muv-Luv Alternative, repleta de gente bonita, corpos exuberantes e tensão sexual até o último centilitro cúbico. A propósito, o capítulo 5 do anime Nadesico tem um comentário hilariante sobre o tema********.

Eu poderia exibir uma das infames sequências de fanservice de Muv-Luv Alternative, mas basta
olhar para eles: quando o outro lado não traz gente atraente, há uma supercompensação.

Voltando ao Cenário…

Tendo isso em mente, é hora de retornarmos à Brigada Ligeira Estelar e perguntarmos: qual o motivo de não termos, abertamente, alienígenas? Bem, os motivos estão aí. Eu não queria ver homens-répteis pilotando robôs gigantes contra os protagonistas e batendo de frente com as referências por trás da ambientação. É questão de conceito. É claro, eu poderia ter inserido alienígenas humanóides. A franquia Macross é um exemplo funcional disso no gênero.

Mas aí entramos na questão do desenvolvimento criativo do cenário. Na Constelação do Sabre estão pulverizadas diferentes faces do gênero como um todo. É só olhar a seção Por Trás do Sabre”: cada planeta abriga um ou mais nichos específicos encontrados em animes. Além disso, os Proscritos surgiram de forma orgânica no cenário e ajudaram a definir a natureza dos protagonistas, inclusive (mais sobre isso AQUI). É claro, há uma trama por trás deles.

Apesar dos proscritos serem humanos, eles se enquadram na categoria do “monstro” — mas há
inimigos humanizáveis no cenário, então isso não é um problema (arte de Israel de Oliveira)

Todas as tramas internas da Constelação poderiam ser esvaziadas em meio a um contexto gigante demais, então não houve opção — mas isso não exclui a existência de aliens! Altona deixa clara sua presença pregressa: é só um gancho para mestres de jogo introduzirem seus alienígenas, caso os queiram. Além disso, os evos em si trazem a sombra de nossa própria interferência em vários mundos. Talvez nós tenhamos criado eventuais “alienígenas” no passado!

Há referências às Guerras Firborgs no passado de Winch, atestando a existência de outras variedades humanas criadas geneticamente além dos Evos. Se partiram da Constelação, para onde foram? Eles podem voltar um dia? Os próprios Proscritos tem estranhos sinais evolutivos já pontuados — as pistolas Íxion podem identificá-los de algum modo misterioso. Apenas lembrem: estas são só possibilidades plantadas no cânone. Quanto a seu uso, o mestre decide.

O desenho estadunidense Exo Squad (resposta gringa aos animes de mecha) tinha ideias
interessantes mas não resistiu a fazer dos seus neo-sapiens monstruosos em algum grau.

Teremos um gancho, no novo BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG, para incursões fora da constelação na sequência dos eventos de Batalha dos Três Mundos e dos romances (o terceiro volume responderá muita coisa). É questão de fidelidade conceitual: este cenário se propõe a representar diferentes aspectos da sci-fi animada japonesa em um todo coerente e eu não poderia deixar as imensas jornadas para o desconhecido canonicamente fora do alcance dos jogadores.

Eu só precisava preservar a importância da ambientação e agora isso é mais fácil de ser feito. Isso salvará também alguns conceitos não tão facilmente encaixáveis na constelação… mas vamos dar o devido tempo ao tempo. O RPG precisa sair antes de termos qualquer outra perspectiva e isso não está, no momento, nas minhas mãos. Por enquanto, vamos deixar a fronteira final para os mestres. Teremos tempo para cuidar disso.

Até a próxima — e divirtam-se.

Melda Dietz (Patrulha Estelar 2199). Sim, ela é azul. E daí? Sem o seu… apelo,
muita gente poderia não ter comprado a humanização dos gamilon na série.

* E de algumas influências orientais assumidas, inescapáveis mas coerentes: obras como Akira e Cowboy Bebop foram consumidos pelo público estadunidense e tiveram um alcance maior do que seu tradicional material de nicho. Ghost in the Shell inspirou Matrix!
** A FC japonesa pré-II Guerra surgiu na esteira da sua abertura aos portos ocidentais, influenciada pela literatura de nomes como Jules Verne, mas rapidamente foi cooptada por um pensamento militarista (na esteira da Primeira Guerra Sino-Japonesa e da Guerra Russo-Japonesa). Hoje sua influência é mais sentida em materiais steampunk e dieselpunk.
*** A lista é grande demais para ser contabilizada mas inclui, entre inúmeros exemplos, animes como Patrulha Estelar, a franquia Macross, Dairugger XV, Comando Dolbuck… enfim, não é pouca coisa. Em alguns animes, nem mesmo esse recurso cosmético é usado: os alienígenas são humanos sem tirar nem pôr.
**** Naqueles idos de 1963 e mesmo nos anos 80/90 da Nova Geração, era mais fácil colocar um item esquisito sobre os atores (orelhas pontudas nos vulcanos, tinta azul e antenas estranhas nos andorianos, aquela testa meio enrugada dos bajoranos, ocelos na pele dos trills)… e pronto, temos um alienígena-miojo feito em três minutos.
***** Há exceções, mas eles tendem a desempenhar um papel mais coadjuvante (como em Space Adventure Cobra) — ou, no caso de adversários, há sempre um gancho humanizador (como a “Micronização” em Macross).
****** Isso pode ser visto mais claramente nas animações estadunidenses dos anos 80, quando os heróis apolíneos enfrentavam vilões desfigurados — peguem desenhos animados como Spiral Zone, Centurions ou até mesmo Comandos em Ação (já falamos um pouco disso AQUI).
******* Não à toa, quadrinhos de esportes são muito populares no Japão e eles trabalham muito essa admiração por trás das rivalidades ferozes. As disputas de nossos conhecidos Naruto e Sasuke (obviamente, de Naruto) ou a de Hanamichi Sakuragi e Kaede Rukawa (no sensacional mangá esportivo Slam Dunk) — assim como a de vários personagens dos quadrinhos para garotos — são herdeiras diretas da clássica rivalidade entre Hyūma Hoshi e Mitsuru Hanagata do seminal mangá de beisebol Kyojin no Hoshi, de Ikki Kajiwara e Noboru Kawasaki. Reparem que nos animes originais de Patrulha Estelar, o arqui-vilão Desslar era tão carismático que se tornou, posteriormente, um dos grandes amigos dos personagens…
******** Spoiler de Nadesico: essencialmente, no passado da série, capitães de meia idade comandavam belonaves e inspiravam confiança para a tripulação… e como esta era composta de pessoas jovens e atraentes, a moral nas naves permanecia alta. Mas com o tempo, a tecnologia tornou o papel do capitão meio supérfluo, fazendo os veteranos serem substituídos por capitães relativamente mais jovens e de ótima aparência. Ou seja: teoricamente qualquer um pode ser o capitão — os computadores cuidam de tudo, mesmo…
Por fim, um comentário: se pensarmos bem, não haveria muita diferença em vários animes do gênero caso facções humanas fossem trocadas por alienígenas ou vice-versa. É mera questão de colorização… 😉

DISCLAIMER: todas as animações e filmes mencionados neste artigo pertencem aos seus respectivos proprietários e estão aqui por motivos jornalísticos e divulgacionais. Nenhum direito foi infringido.
ARTE NO TOPO: Israel de Oliveira, para Batalha dos Três Mundos.

5 comentários

  1. “Se pensarmos bem, não haveria muita diferença em vários animes do gênero caso facções humanas fossem trocadas por alienígenas ou vice-versa. É mera questão de colorização…”

    Boa observação. You have a point.

  2. Ficção científica com alienígenas parecidos com seres humanos me incomoda. Costumo gostar de ficção científica minimamente hard, realista. Científica. Também gosto de umas obras de ficção por demais fantástica, mas muitas vezes essa falta de realismo cai melhor em gêneros como fantasia medieval.

    O que escreverei neste parágrafo tem pouco a ver com o artigo, mas acho interessante pontuar. Me parece que o sucesso do gênero real robot reside na combinação de narrativas e tramas militares realistas (acho que o grande expoente delas mundo afora são os longas-metragens, chamados de “filmes de guerra”) com tecnologia e design fantasiosos. Crianças podem achar filmes de guerra enfadonhos. Adultos podem achar super robot escrachados, com seus mechas únicos, sem produção em massa, fora de série e fora do sério.

    Isso posto, digo que ficção científica minimamente hard não tem seres alienígenas parecidos com humanos. Assim, Macross (que conheço só de nome, nunca peguei para apreciar) para mim é real robot e, tendo adolescentes como público-alvo, também agrada crianças e adultos. Mas não é hard sci-fi. É um exemplo de como nem toda obra de arte real robot é hard sci-fi. Já uma franquia como Uchû Senkan Yamato (Star Blazers, Patrulha Estelar) é mecha sem ser super nem real robot. E está longíssima de ser ficção científica hard.

    Qual é a chance de dois planetas desenvolverem seres humanoides parecidos com o “Homo sapiens” (uso aspas na falta de itálico)? Qual é a chance de em cada um desses dois planetas haver condições tão semelhantes a ponto de surgirem espécies tão parecidas? Mais ainda: se podem gerar descendentes férteis, então ambas são “Homo sapiens”! Como é que essa espécie se desenvolveu em mais de um planeta? Qual é a plausibilidade de uma Terra II, com biosfera tão semelhante a deste nosso planeta, existir? Em hard sci-fi isso não acontece.

    Isso pode acontecer se esses seres humanoides extraterrestres e os humanos terráqueos não tiverem um desenvolvimento separado; mas sim uma origem comum, seja ela na Terra, nesse outro planeta ou em outro lugar do espaço (como acontece em Yamato). E isso também não é hard sci-fi!

    Por fim, digo que histórias com extraterrestres parecidos com seres humanos sem uma origem em comum são no mínimo uma baita referência, quando não apologia, ao criacionismo.

  3. Sobre Brigada Ligeira Estelar, penso na civilização antiga de Altona.

    Seus seres têm grande semelhança com os humanos que vieram ao planeta depois, a ponto de terem deixado tesouros tecnológicos que podem ser muito bem usados por seus sucessores.

    Se for estabelecido no cânone que a origem desses seres não remonta à ancestral Terra, considerarei BLE ficção futurista fantástica. “Científica”, assim, entre aspas. E não deixarei de continuar gostando MUITO do cenário! Afinal, eu também gosto MUITO de Ideon e Tropas Estelares (os chamados “magrelos” são bem parecidos com seres humanos)!

    Escrevi todo esse papo sobre hard sci-fi, real robot, super robot, Macross, ficção fantástica e referência a criacionismo sabendo que NADA disso é novidade para você, Lancaster. Mas considero que os comentários podem ser interessantes por fazer pensar na origem da antiga civilização altoneana como elemento determinante para a caracterização de Brigada Ligeira Estelar como um cenário mais próximo de ficção científica hard ou de ficção fantástica.

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