O Estilo Império Espacial

A essa altura ninguém liga tanto para isso, mas muita gente estranhou em um primeiro momento o visual pseudo-napoleônico na Constelação do Sabre. Embora ele esteja bem misturado com elementos contemporâneos — e eu até gostaria de ver essa mistura mais aberta. Eu só posso dizer o de sempre: ele nunca foi gratuito. Seria muito mais fácil, até por questões de acessibilidade, fazer versões um pouco mais viajadas de trajes contemporâneos e mandar ver.

Mas não seria conceitualmente honesto. O gênero sempre lidou com anacronismos em coexistência com elementos contemporâneos e futuristas. Na verdade, a própria ficção científica sempre se valeu disso, tanto em conteúdo quanto visualmente (alô, Buck Rogers!). Nos animes, podemos ver isso antes do real robot: basta lembrar de Capitão Harlock. O autor, Leiji Matsumoto, apenas jogou piratas no futuro — e para adequá-los ao cenário, deu uma estilizada…

Paradoxalmente, essa abordagem se tornou uma instituição com o advento do Real Robot — até se tentou fugir dela em certo momento, mas a curva gravitacional falou mais alto. E embora muitas vezes tenha se tentado fugir desse espectro, eu não poderia deixar esse elemento passar batido. Apenas decidi incorporá-lo com critério. E por isso mesmo, vamos dar uma pequena olhada em como essa bagagem se converteu nas decisões criativas por trás do cenário.

Alguns até são identificáveis de cara por detalhes de cena ou até variações visuais, mas
todos esses animes são
space operas com robôs gigantes — ou grandes belonaves.

Um Pouco de História

Aqui, precisamos falar de retro-estilos, quando a moda de uma época volta à tona muito tempo depois e seus elementos não são exatamente transplantados, mas resgatados e reinventados* para a época corrente. Eles nunca foram um fenômeno exclusivo do Século XX: um dos retro-estilos mais antigos de todos os tempos é o Estilo Império francês (e seus correspondentes em outros países, como o Estilo Regencial britânico), entre 1800 e 1815 mais ou menos. 

O Estilo Império foi fruto do impacto gerado pelas então recentes descobertas arqueológicas sobre a Grécia e outras civilizações da antiguidade, afetando a arquitetura, a moda e as artes decorativas. Se vocês duvidam, peguem qualquer filme baseado na obra de Jane Austen. Olhem bem para os penteados femininos, cheios de cachos, e os vestidos com decotes e trajes leves: eles remetem à influência grega mas são roupas de seu tempo**. Apenas comparem.

Nos trajes e penteados femininos, além da arquitetura e dos trajes militares,
isso é mais evidente: reinventava-se algo da Grécia antiga para aquele tempo.

Mas qual a relação disso com robôs gigantes? Primeiro precisamos atribuir parte da culpa ao Teatro Takarazuka***. Ele já havia deixado uma marca imensa na história dos mangás**** mas foi fundamental para firmar no imaginário japonês uma idealização da Europa oitocentista — e aqui entra a trilogia dos super-robôs de Tadao Nagahama: ele trouxe a iconografia e o melodrama egressos dessas influências para Voltes V, redefinindo definitivamente o tema.

Quando o gênero transformou-se radicalmente com o advento do real robot, todos esses elementos vieram à tiracolo. Mesmo quando se tentava fugir dessas referências estéticas, ela foi pulverizada em forma de conceito e, em algum momento, a grande maioria dos criadores cansou de disfarçar: o Real Robot se tornou um festival de monarquias cheias de intriga e, por tabela, de trajes cheios de abotoaduras e elementos visuais deliberadamente anacrônicos.

Teatro Takarazuka: ajudando a estabelecer uma idealização estética
da Europa que migraria para os mangás e animes.

Há outro motivo para isso: na segunda metade do século XX, o Japão mergulhou numa jornada desenvolvimentista a qualquer custo e, por isso, criou uma identificação cultural com a ascensão econômica das nações ocidentais. Daí consumirem tanto material clássico europeu por décadas***** — essa idealização não se deu sem contexto. Juntar isso às monarquias espaciais tão presentes na ficção científica****** foi um desenvolvimento até lógico.

Ah, sim: no Gundam Original, Char foi visualmente inspirado no Michael Caine jovem de Zulu — referência vitoriana, nesse caso, e funciona. De lá para cá, mesmo sem contarmos essa franquia (F91, Wing e tantos outros), tivemos vários exemplos nesse sentido: Aldnoah Zero, Code Geass, Macross Delta (os Windermere, lembram?), os impérios espaciais de Lenda dos Heróis Galácticos e Tytania… a lista é farta. Eu não poderia ignorar essa estética, só isso.

Na verdade (talvez por preservar as costeletas na hora de tirar a máscara), acho o Full Frontal de
Gundam Unicorn mais parecido com Caine do que o Char original — mas o capacete entrega.

Dólmãs, Abotoaduras e Robôs Gigantes

E como isso se encaixa em Brigada Ligeira Estelar? Bom, o cenário nasceu da fusão de dois ou três cenários pessoais meus de Ficção Científica e o conceito de Império Espacial, presente também em vários RPGs*******, já estava lá. Eu me apeguei muito às convenções do gênero desde o começo. Não era minha intenção reinventar a roda, nunca foi. A adoção dessa estética fazia sentido. Eu só decidi fazê-lo com critério e procurei fazer meu dever de casa.

Ao invés de apenas procurar meia dúzia de animes e passar para os ilustradores (um atalho que não deixei de percorrer, eventualmente), decidi ir direto à fonte: minha missão visual era retratar um futuro e criar, visualmente, um retro-estilo futurista baseado em outro retro-estilo, novecentista, inspirado em estilos da antiguidade… ou seja, trazer uma estética para atualizar uma estética que buscava atualizar outra estética. E não foi nada fácil.

Admito: o Tallgeese de Gundam Wing é um acerto de design imenso, recuperando
os elementos gregos formativos da estética napoleônica da OZ********.

O primeiro passo foi voltar ao Estilo Império em si e repensar esses conceitos de modo atual e futurista em um termo conjunto, aonde moças possam usar saias mais curtas ou calças compridas e ainda possamos ver um rapaz de jeans e camiseta, sem contradição com os nobres e seus trajes pomposos. Essa mistura de contemporaneidade e anacronismo é uma forma de buscar atemporalidade visual e garantir que em dez, vinte anos, nada soe datado. Dá trabalho.

Por outro lado, isso exige bom-senso para não cair no ridículo: aplicar as artes decorativas a tudo pode ser muito perigoso. Naves e tecnologia precisam ser levadas a sério (como é norma no gênero). Claro, robôs e certas máquinas de combate ainda precisam de identidade visual. O próprio Robô Hussardo imperial é um bom exemplo (falamos da sua criação visual AQUI). Ele é polêmico até hoje, mas o Gundam partiu de uma armadura samurai e ninguém liga…

A evolução das espécies: o soldado hoplita grego, o couraceiro napoleônico (com elmo de
inspiração hoplita e armadura peitoral)… e o couraceiro do futuro (arte de Altair Messias)

Procuro desencavar referências concretas para essa mistura, com diversas fontes visuais, da moda ao cinema. Desde o início, todos os artistas envolvidos contribuíram com elementos úteis para a construção estética do cenário. Uma boa referência, nesse sentido, são as imagens dos Tipos em Belonave Supernova 1 e 2 — contemporâneos mas anacrônicos na medida certa. Vejam lá, porque não é tão comum olharmos para fora da nobreza e da militaria*********.

Nem acredito ter chegado, ainda, ao ponto almejado. É um processo de acertos, erros e ajustes feitos ao longo do caminho, no qual os visuais das pessoas comuns e dos objetos de cena são tão importantes quanto os trajes militares, os itens de uso da nobreza — ou o perfil decorativo e arquitetônico, aonde é preciso estabelecer alguns princípios comuns mas retratar, assim mesmo, a pluralidade estética representada pelos diferentes planetas do Sabre.

Tenho munido os desenhistas de referências de moda, como estas, ultimamente.
Tudo para chegarmos a um visual atemporal com elementos de outros tempos.

Para Terminar, por Enquanto

Esse texto já se estendeu demais (podem perceber, ele está superior em tamanho à maioria dos artigos deste seu canto na internet ) e eu não vejo realmente um fim à vista para ele. Isso reflete justamente a continuidade do processo criativo do cenário. Mas eu quis deixar claro: nada é gratuito. Seria muito fácil para mim fazer do Sabre um “século XX/XXI” no futuro — seria até mais fácil em termos de identificação, na verdade. Mas seria preguiçoso.

Ao mesmo tempo, nunca foi a intenção alienar mestres e jogadores com um cenário não-reconhecível para quem assistiu ao acaso um anime qualquer de robôs gigantes e quer ter essa experiência na mesa de jogo. Brigada Ligeira Estelar sempre abraçou as tradições do gênero. Elas são a base da ambientação. Aqui não é diferente, tenham certeza.

Até a próxima — e não levem isso tão a sério. Quem precisa fazê-lo somos nós. Vocês estão aqui para se divertir.

Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades…
(sim, eu sei, essa citação é pra lá de manjada)

* Não é preciso ir muito longe para pegar o conceito. Basta notar que o mundo não mergulhou em um túnel do tempo quando, na década passada, Stranger Things estourou, Bruno Mars tocava Locked out to Heaven como se o The Police tivesse se reunido novamente, Blade Runner teve continuação e camisetas com estampas da Atari apareceram pelos cantos.
** Para se ter uma ideia, no começo do Século XIX essa influência grega levou ao uso de tecidos mais leves e vestidos relativamente mais reveladores das formas do corpo. A era Vitoriana foi bem diferente e muito mais puritana, a ponto das damas da segunda metade desse século, embrulhadas até o pescoço com camadas de vestidos e espartilhos, se constrangerem com os retratos de suas avós (“como elas podiam se vestir assim?”). Não por acaso, me inspirar vagamente nessa época me permitiu inserir um “fanservice sutil” nos personagens.
*** O Takarazuka Revue, firme e forte até hoje, é um teatro musical feito por e para mulheres — uma espécie de avesso completo do Teatro Kabuki. Enquanto esse só tem atores masculinos, mesmo nos personagens femininos, o Takarazuka só tem atrizes — inclusive em personagens masculinos. Se o Kabuki tem séculos de tradição, status de teatro clássico e é japonês até a medula, o Takarazuka é kitsch, escapista, pop e cosmopolita, com peças ambientadas em lugares românticos, exóticos e bem distantes, como… a Europa oitocentista. Ah, sim, eles já fizeram peças baseadas em mangás e animes, inclusive uma dedicada a Lenda dos Heróis Galácticos.
**** Osamu Tezuka, o pai dos mangás, era iluminador do Teatro Takarazuka em sua juventude. A maquiagem exagerada dos atores parecia ampliar seus olhos e estes pareciam refletir os diferentes focos de luz ao seu redor. Isso o inspirou a colocar olhos grandes em seus personagens, refletindo focos luminosos — e isso se tornou uma marca registrada dessa estética. Além disso, os quadrinhos femininos beberam muito desse ethos escapista do Takarazuka.
***** Isso se refletiu também nos animes — basta lembrar das inúmeras adaptações de clássicos literários juvenis ocidentais que infestaram a televisão japonesa dos anos 70.
****** Basta lembrar de Duna, cujo Império governa o Universo Conhecido, ou o Império Galáctico de A Fundação, ou do ciclo do Império Terrano de Poul Anderson…
******* Como em Traveller, Warhammer 40.000, Galactique Empire, Fading Suns… a lista não é tão pequena assim.
******** A OZ, de Gundam Wing, é o braço militar da verdadeira aristocracia terrestre desse futuro, a Fundação Romefeller. E esses abraçaram o visual napoleônico até a medula. Em uma boa referência de design, o Tallgeese não apenas soa como o resgate ao elmo hoplita (presentes em couraceiros e carabineiros) como o escudo no ombro com uma águia estampada soa como um aceno visual à essa estética e suas influências — lembrem-se, os estilos Império/Regencial são retro-estilos — e, em um arremate inteligente, ele empunha um rifle comprido no antebraço… remetendo às longas lanças empunhadas pelos hoplitas! Por mais que eu tenha críticas à série, essa foi uma grande sacada do mecha designer!
********* Isso acontece justamente pelas necessidades prática do gênero. Quando se foca em militaria e política, as pessoas comuns costumam ficar meio de lado e serem retratadas apenas como pano de fundo — salvo quando algum dos personagens se apaixona por uma civil ou coisa parecida. Assim, essas oportunidades precisam ser agarradas.

DISCLAIMER: Gundam Unicorn, Gundam Wing e Valvrave the Liberator pertencem à Sunrise, Inc.; Capitão Harlock pertence à Toei Company, Ltd.; Aldnoah.Zero pertence à Olympus Knights e A-1 Pictures Inc.; Lenda dos Heróis Galácticos pertence à Yoshiki Tanaka, via K Factory; Macross Delta pertence à Studio Nue, Inc.; Super Robot Wars Original Generations: The Inspector pertence à Banpresto Co., Ltd. via Asahi Productions, Inc.; Todos os direitos pertencentes à seus devidos proprietários — imagens para fins meramente divulgacionais.

NO TOPO: imagens de Brigada Ligeira Estelar. Artes por Altair Messias e Will Walbr.

4 comentários

  1. Sempre me perguntei porque geral usava ombreiras e parecia estar nos 1800 mesmo estando no “futuro” kkkkk.
    Confesso que estranhei, estranho, e vez outra tenho dificuldade em me identificar com o cenário devido a isso. Mas tudo certo, as roupas são lindas e é isso que importa

Deixe uma resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s