Farei um mea culpa aqui: Montalbán teve seu desenvolvimento como planeta (em termos de abordagem ficcional) atropelado por conta de sua relação com uma das principais linhas de trama do cenário — a sucessão imperial. Com isso o mundo em si se tornou algo desimportante, mero elo de ligação com esse arco maior, e cabe a mim corrigir isso ao longo dos próximos anos. Cada planeta na Constelação precisa ser, também, fonte para suas próprias aventuras.
Mas o que nos diz o material produzido? Sim, este mundo parte de princípios sociais sob os quais honra e virtudes estão acima de contratos assinados, ou da própria palavra da lei, mas isso não estabelece nada funcionalmente concreto quanto às aventuras nesse mundo ou ao seu encaixe nos referenciais do cenário. E, do ponto de vista de quem escreve, referências são fundamentais — elas trazem luzes sobre a condução de um planeta em nossas aventuras.
O segundo detalhe é o fator hispânico do planeta — um legado da influência capa-e-espada específica do cenário — mas salta aos olhos um detalhe: um clã investiu em ciência e humanismo, sendo crucial para salvar Montalbán do mesmo destino da Espanha* por nós conhecida, impedindo os Mondragor de crescerem (estes caminhavam para a expansão via influência, presença e casamentos) e garantindo o estado laico nesse mundo. Temos um ponto de partida aqui!
Referências Iniciais
Mas, antes de chegarmos a ele, precisamos ver como este planeta se encaixa sob o referencial do gênero e isso não é fácil: quando falamos em personagens guiados por códigos de honra no gênero, somos levados ao pré-real robot, nem tanto nos super robots mas às space operas de Leiji Matsumoto**. Pós-Tomino, tais virtudes são atribuídas a iniciativas individuais*** — MAS se o militarismo é tematicamente central em Bismarck, não o é em Montalbán****.
Isso diz muito sobre os Montalbaneses — mas pouco sobre seu mundo. Aqui voltamos ao conceito de Honra, lembrando o velho Hackmaster 4ª edição: é fonte de encrencas. Mas como enquadrá-lo dentro da lógica da animação japonesa? Basta lembrar de Isabellita Jara: ela tem o status mitológico de uma Lynn Minmay mas, ao invés de uma moça sorridente vendendo o amor como salvação, temos uma cantora de protesto (e guerrilheira morta) em mãos Tarsianas.*****

De uma forma simples? Eles são um cenário shōnen****** de luta em potencial mas com robôs gigantes! Um Samurai Shodown pseudo-europeizado e futurista (pensem no comparativo: o cânon dessa série se passa entre 1786 e 1811. Familiar?). Não é como a cultura duelista de Annelise ou Trianon. É um ambiente de capa-e-espada algo rude e com um espírito menos elegante, mais agreste… mas também mais hormonal por trás da eventual capa de virtude preservada.
Ou seja, ele se presta também ao picaresco! E é possível mergulhar na base clássica do real robot, no sentido de termos a política turbinando os eventos a serem confrontados pelos personagens. E apelando ao senso duelista de um shōnen de forma coerente com o espírito do moeru*******, com um tanto de aspereza arrogante. Mas na falta do fator místico, temos a crença dos personagens pelas Estrelas… e uma mão da ficção científica na hora das ameaças.
Montalbán em Jogo
E por trás desse espírito shōnen? O culto aos heróis, um orgulho muito próprio… então por qual motivo eles se deixaram incorporar tão facilmente pelo Império, lutaram para impedir o esforço posterior de se impedir a entrada da influência Mondragor no planeta e abraçaram a defesa de Lucas Falconeri e do seu direito ao trono imperial? É digno de nota: eles odeiam de verdade a Tarso, não a Albuquerque. Há intriga por trás de tudo e ela vem de antes.
Aventura Picaresca: os personagens desafiam hipocrisias sociais embutidas nas relações de poder e o fazem com um espírito muito… sacana. Para maiores.
Capa e Espada: intriga política, forças se digladiando nos bastidores — e os personagens tomando partido, em nome de uma causa, para salvar o império!
Contra-Terrorismo: suas alianças podem atrair os terroristas da TIAMAT. Mas em um mundo cujo pavio curto é cultural, as reações podem ser desastrosas…
Ficção Científica Militar: com orgulhos e interesses à flor da pele, Montalbán é um grande terreno para confrontos regionais e rivalidades familiares!
Shōnen de Luta — com Robôs: vocês irão ao encontro dos mais fortes, treinando e melhorando seus robôs, contra uma grande ameaça surgindo no horizonte…
Space Opera: pelas particularidades desse mundo, a combinação de super-ciência e de aspectos mais folhetinescos pode ser uma grande fonte de diversão.
Tendo isso em mente, é possível chegar às forças internas em disputa. Reparem: ao encamparem uma narrativa do resgate de Isabel Del Mar por Lucas Falconeri, os Montalbaneses se limparam das manchas da ocupação tarsiana… e elas podem, sim, ter relação com essa aliança conservadora dos Mondragor em Forte Martim, Montalbán e Tarso. Para uma incursão como essa acontecer de forma tão cirúrgica, precisaria de um trabalho de inteligência nos bastidores.
Voltando à Guerra do Sabre, talvez esse conservantismo estivesse já embutido em Montalbán quando de sua anexação. Isso diz muito: eles foram incorporados muito facilmente para um povo tão aguerrido. Falconeri tinha aliados neste mundo e os núcleos conservantistas foram na maioria desmontados. O Clã Calatrava******** impediu sua reconstrução e reação no planeta mas eles ainda podem se reconstruir com apoio de setores mais retrógrados na sociedade…
A defesa Montalbanesa de Lucas, e de sua honra, tem algo de Resistência Francesa no sentido de símbolo e narrativa em torno do qual um povo pode somatizar, e encontrar catarse, de uma dupla vergonha: da derrota e ocupação alemã, de um lado, e da imensidão real do colaboracionismo Francês. Aí se encaixa a devoção ao Império (na verdade a devoção ao herói libertador Lucas Falconeri) e ao legado dos Escalantes — ou da mitificação de Isabellita Jara.
Para Terminar
Isso nos dá finalmente um ponto de partida para começar a explorar melhor este mundo. Montalbán tem muito em comum com o espírito heroico de Albuquerque, mas há um senso de não garantido, de se proteger algo a longo prazo para evitar seu desmanche. Há uma energia imensa também, de personagens com vontade, garra — e orgulho demais para admitir uma derrota. Por outro lado, há alguma sombra conservantista a ser combatida no dia-a-dia.
Essencialmente vocês tem uma liberdade conquistada a duras penas, e se orgulham disso. Mas as ameaças sempre se infiltram e buscam comer seu mundo por dentro antes de eventuais ataques, por influência econômica (vide Tarso) ou social (vide os Mondragor, sempre procurando crescer, amealhar seguidores religiosos e enredar-se no poder político). Tolerar a ingerência social pode custar caro no futuro.
E mostrem sua energia. Sejam fortes!
Até a próxima.
* A Espanha, por muito, muito tempo, teve uma severa ingerência da igreja no estado — e foi uma das pontas de lança da Santa Aliança, o braço religioso do pós-Congresso de Viena para reverter os efeitos da Revolução Francesa e do Império Napoleônico no mundo, com efeitos graves na América Latina também. Esse poder foi reforçado durante o período franquista e levaria muito tempo até se falar de estado laico no país.
** Se olharmos bem, nas obras de Matsumoto há uma ênfase muito grande na honra entre soldados, mesmo quando o estado ao qual eles servem não mostra a mesma dignidade. Em Patrulha Estelar, a Terra como instituição é moral e simbolicamente benevolente, mesmo quando comete falhas estúpidas (e estas costumam reverter-se gravemente contra ela), mas não é incomum vermos do outro lado inimigos igualmente dignos. Já os Illumidas de Capitão Harlock são uma horda de filhos da (censurado), mas eles estão no papel do inimigo e mesmo assim eles nos brindam com personagens dignos aqui e ali, como o Comandante Zeda — ele claramente poderia ser até um amigo para o protagonista, não estivessem eles em lados opostos. Mas novamente, em Brigada, isso cai melhor para personagens de Bismarck, não de Montalbán. Mais passionalidade, menos severidade, lembram?
*** A primeira série Gundam, em subtexto, é anti-militarista e faz questão de deixar claro: a Federação não é santa, mas Zion é muito pior e por isso deve ser combatida (e mesmo esfregando na cara — com direito a um vilão ser comparado a Hitler e pensar nisso como um elogio, não como um ataque) muita gente não entendeu isso até hoje e um dos finais do jogo Gihren’s Greed, inclusive, mostra como a vitória de Zion nessa guerra não seria um final feliz. Por outro lado, Gundam sempre coloca o soldado pé-no-chão, arrancado de sua casa para lutar, como vítima, e não custa lembrar dos Titãs de Zeta Gundam, que se revelariam tão ruins e em certos momentos até piores, muito piores, do que Zion — e são uma força de elite da própria Federação. Aliás, sendo a primeira série Gundam tão reminiscente da percepção de Tomino quanto à Segunda Grande Guerra, o fato dos Titãs nascerem da federação não encontra uma analogia no fato de que a mesma nação supostamente responsável por vencer os nazistas ter cometido massacres de civis no sudeste asiático?
**** Novamente: Bismarquianos têm mais a ver com esse espírito Matsumotiano, severo e estoico por natureza, do que com a intensidade passional do Montalbanês. Vejam AQUI.
***** Isabelita Jara (★1815 C.E., ✝1831 C.E.): Poetisa, compositora e cantora. De grande talento e rara beleza, recusou a chance de se tornar uma celebridade (e suas letras, complexas e combativas, deixam claro que ela não tinha realmente esse perfil) para se tornar fundadora e líder de um grupo de mulheres escalantes, já que os grupos locais se recusavam em deixá-la unir-se a eles. Essa unidade foi a que maiores danos causou aos invasores entre os Escalantes — embora isso seja até hoje contestado, graças à cultura ferozmente masculina de seu mundo. Isabelita teve uma morte selvagem nas mãos das forças Tarsianas e se tornou uma mártir — e um mito — para seu povo. Suas canções são lembradas até hoje em Montalbán. Esses dados foram publicados em um artigo no antigo site da Jambô Editora, mas os elementos de jogo ligados aos Escalantes acabaram publicados nos livros sem essas informações de background. Fica o registro.
****** Demografia voltada ao público juvenil masculino no Japão. Tecnicamente, obras como Cavaleiros do Zodíaco, Yuyu Hakusho e Naruto são shōnen.
******* O espírito ardente, de intensidade emocional atrás de seus objetivos. Falamos um pouco disso AQUI.
******** Ver A Constelação do Sabre Vol.2, página 16.
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Quero ver mais de Montalbán desde a aparição do Lucas Falconeri. Muito bom.
Eu ia comentar justamente aquilo que o mea culpa já esclareceu, á primeira vista é um mundo muito marcado pelo plot de sucessão imperial plantado nele com boas justificativas do porque Lucas pode florescer como floresceu aqui, no entanto faltam acontecimentos que deem cor e idéias de aventuras fechadas em si.
De resto, se saiu muito bem esmiuçado idéias daquilo que já foi construído.