A Arte do Technobabble

Exigir conhecimento científico de um jogador de RPG quando ele interpreta um físico quântico no futuro distante é como assumir que um jogador veterano de D&D tenha aprendido, jogando com sua vorpal +4, a empunhar uma espada na vida real. Em resumo, é ridículo. Porém, a menção ao “científica” ao lado da ficção tende a melindrar algumas pessoas — e, por isso mesmo, acho conveniente falar de um dos pequenos segredos do métier sci-fi: a technobabble…

… ou, literalmente, “tecnobaboseira”. Sim, é pejorativo mesmo. Ela é útil, contudo, e sem ela os escritores de Jornada nas Estrelas: a Nova Geração precisariam cortar um duro dobrado. Basicamente ela é um jargão técnico cheio de palavras esquisitas mas úteis para dar uma impressão de tecnologia futurista e altamente avançada. O espectador, ou leitor, a aceita pela impressão de contexto. Não é realmente preciso saber como funciona o motor cósmico.

No fundo, ela é uma variação de um velho truque de escritores: o de arranjar, digamos, um guia de viagens de algum país, arranjar alguma expressão original da língua (oi, Google Translator) e dar a impressão de se conhecer determinado lugar (oi, Google Maps!)* — mas, é claro, não basta amontoar palavras difíceis. Por isso, vamos facilitar as coisas para o jogador de BRIGADA LIGEIRA ESTELAR… e fazer aquela perícia “Máquinas” na ficha valer a pena!

A technobabble ajuda na imersão, nos insere no contexto e…. não,
eu não vou traduzir isso! Divirtam-se, anglófonos!

Parecendo Plausível

Em 1996, o professor de física Alan Sokal, da New York University e da University College London, aplicou um trote em uma publicação acadêmica voltada a estudos sociais pós-modernos: soltou a pérola “Transgredindo os limites: em direção a uma hermenêutica transformadora da gravitação quântica”. Pelo artigo, a gravitação quântica não passava de um construto linguístico e social — mas na verdade, esse texto não passava de um festival de abobrinhas.

Sokal tinha um ponto: mostrar como uma publicação de estudos culturais realmente importante estava disposta a mandar o rigor científico às favas caso um artigo fosse ideologicamente alinhado ao seu corpo editorial. O rebu foi imenso quando ele revelou seu trote, três semanas depois, mas o ponto aqui é: um cientista enrolou figuras acadêmicas respeitáveis se valendo de jargões cavalares, pseudociência**… e ninguém ligou, mesmo após sua publicação!

Sim, o trote de Sokal rendeu um tremendo rebu lá fora. Mas o ponto é:
Jargões podem ser usados para gerar uma ilusão de seriedade.

O truque de Sokal foi ser impenetrável mas ter uma base contextual a seu favor na hora de embutir conceitos questionáveis. E isso é um recurso comum entre escritores de ficção científica na hora de aplicar algo fundamental para o gênero: a suspensão de descrença. Esse conceito é importante: através dele, nossa mente aceita elementos impossíveis de serem aceitos realisticamente e podemos fruir de uma ficção sem problemas. E isso varia com a época.

Um problema para a aceitação do filme Capitão Sky e o Mundo do Amanhã veio de seu conceito: recriar a ficção da era pulp*** e dos seriados de cinema dos anos 30, quando era preciso bem menos para ativar essa suspensão. Tendo contexto, o filme é divertidíssimo… MAS um ser humano médio nos dias de hoje não tem a obrigação de tê-lo: para ele a Angelina Jolie morreria de embolia no oceano e aquelas estátuas dentro do foguete gerariam um “mas que p…?”

Eu gosto de Capitão Sky, mas um crítico estava certo quando disse:
“Esse filme tem tudo para ser um grande sucesso em 1940”.

Ignorância é uma Bênção?

Em RPG, seria mais fácil lidar com os elementos mais exagerados de um Capitão Sky. Bastaria o mestre de jogo dizer para os jogadores, na sessão zero: “olha, as leis da física são mais flexíveis neste cenário porque, na época, ou ninguém pensava nessas coisas ou não se tinha o conhecimento de hoje”. Por isso o final de uma sci-fi pulp divertidíssima como “A Legião do Espaço”, de Doc Williamson, nos dá tanta vontade de bater a cabeça na parede****.

Na produção de hoje não temos essa desculpa, salvo a da desconstrução***** — daí é preciso um arsenal de truques para manter a suspensão de descrença:

Funcionalidade: soluções pseudo-científicas são criadas para desatar situações dramáticas. “Precisamos criar o aparelho x para resolver o problema y”.

Funcionalidade II, a Missão: não importa como algo funciona, o importante é funcionar! “Engenheiro-chefe? Repare a gravidade artificial urgentemente!”

“Eu disse urgente, engenheiro-chefe! Ninguém está interessado em saber
como a gravidade artificial da nave funciona neste momento!”

Pseudociência: estabelecer conexões vagamente científicas de causa e efeito — como ganhar poderes ao ser mordido por uma aranha (“ela é radioativa!”).

Rebimboca da Parafuseta: dê um nome difícil e explique como máquinas incríveis funcionam, com jargões e palavras inventadas. Sentido é opcional******.

Unobtanium*******: substâncias, metais ou partículas milagrosas. Vide o Gundanium de Gundam Wing, a Dragonite de Outlaw Star — ou o LCL de Evangelion.

É fato, pode-se inserir um elemento real para tornar a mentira convincente. O citado Gundanium é um exemplo: essa liga é produzida no espaço, em gravidade zero — e, realmente, as estruturas cristalinas formadoras dos metais, ao se solidificarem, podem gerar resultados extremamente diferentes em microgravidade. Porém, esse toque realista é a justificativa de capacidades muito excessivas, permitindo a esses robôs assobiarem e chuparem cana********.

“Meu robô faz movimentos de Street Fighter? É o Gundanium,
meu filho, o Gundanium. Próxima pergunta?”

Aplicando em Jogo

É claro, não vou julgar Wing por isso. Esse recurso foi utilizado por gente demais, com diferentes graus de sucesso… e diacho, eu mesmo fiz isso com os robôs Efrites********* de Ottokar (sim, há uma explicação para eles). Na verdade, todos os conceitos apresentados são até… simples para mestres e jogadores de Brigada Ligeira Estelar usarem em suas campanhas — e, de certa forma, essa enrolação faz parte de qualquer pacto de suspensão da descrença!

A primeira recomendação é ter uma ideia da importância ou não desses elementos em sua aventura. Vamos ao exemplo citado da gravidade artificial. O nome é auto-explicativo, qual o sentido em se preocupar com algo além disso? No entanto, em uma batalha no meio do nada, ela pode deixar de funcionar e o engenheiro-chefe anuncia: o conversor de fluxo foi destruído e não vai resistir à captação de energia cósmica — podendo fritar de vez os propulsores.

Alguém na nave precisa saber interpretar esses painéis. E se você tem uma
perícia completa “Máquinas” em sua ficha, esse alguém é você.

A melhor esperança é buscar uma peça nos escombros da nave destruída, caso ela esteja funcionando. Para rastreá-la será preciso usar um captador de fluxo de ondas de partículas sincronizados à frequência dos geradores cósmicos, para localizar sua circulação em traços residuais (afinal, a nave inimiga está aos pedaços e a energia provavelmente não está sendo gerada), dificultando seu trabalho. Porém temos, em meio aos escombros, um… bom, já chega.

Em termos do novo Brigada Ligeira Estelar RPG, o mestre deveria recompensar com pontos de Valor (AQUI) o jogador que use sua perícia para algo além de adicionar um bônus de +4 às suas rolagens (falamos disso AQUI). As soluções não deveriam ser trazidas pelo mestre, embora ele sempre possa dar uma ajuda aqui e acolá. Se um protagonista********* usar a technobabble a seu favor — e isso for acompanhado de boas rolagens — deixe-o conduzir a situação!

Personagens com esse perfil tem um papel importante: encontrar soluções
para encrencas que mantém o grupo em um beco sem saída.

Para Concluir

Alguns chatos de galocha acham que recursos como esses dão à ficção científica má fama. Mas essa visão, digamos, elástica da ciência e principalmente dos feitos alcançados por ela em uma ambientação são parte do grande apelo do gênero no meu entender. Eles conectam os conceitos ao espectador, criam atalhos facilitadores, ajudam na aceitação de ideias potencialmente complicadas e tiram complicações do caminho, permitindo o foco no mais importante.

Então não se sinta intimidado. Se você não precisar da explicação quanto ao conversor de fluxo, ela não é relevante: sabíamos como ele se chamava e qual era sua importância. Vá em frente, divirta-se antes de mais nada… e diacho, se foi possível convencer toda a comissão de análise de uma publicação acadêmica com um monte de groselhas, você pode convencer seu mestre de jogo, e os demais jogadores, com toneladas de jargão macarrônico!

Até a próxima.

Tá bom, tá bom, nós entendemos…

* Lester Dent, autor de Doc Savage, sugeria o uso de guias de viagens e mapas de ruas para dar uma impressão de realidade. Assim, bastava usar algumas frases prontas em, digamos, Árabe Egípcio — do tipo “Que horas são?” ou “Amigo, tem um cigarro?” — para colocar na boca de algum capanga armado, ou um mapa de ruas para descrever os passos de um personagem em uma cena (“Entrei pela Bab al-Futuh e segui pela Rua Muizz para encontrar uma mulher misteriosa”) — e dessa forma, dar a impressão de que o autor já esteve ou pelo menos conhece muito bem a cidade do Cairo, sem percebermos que na verdade ele não sabe nada além disso. Funciona, mas hoje em dia a Internet traz informações muito mais confiáveis para quem não quer ser pego!
** Entre outros conceitos de difícil digestão acadêmica, Sokal incluiu o Campo Morfogenético, abraçado pelos adeptos da “Nova Era” e das teorias Holísticas. É surpreendente isso ter passado pela avaliação da comissão responsável por uma publicação acadêmica — provando o ponto do autor.
*** As revistas pulp eram feitas do material mais barato (o papel de polpa) e traziam contos e novelas de ação, com muito alcance popular. Haviam publicações voltados a gêneros como o policial, o horror e a ficção científica — sendo este o lar do gênero em seus primeiros anos. Os clichês mais imaginativos e descabelados da space opera se desenvolveram nessas publicações.
**** Já falamos disso antes, AQUI, mas basicamente a personagem ao nos salvar de uma armada inteira de invasores alienígenas, destrói — e desnecessariamente — a… AHAM.
***** Redshirts, de John Scalzi
 recentemente lançado por aqui pela editora Aleph — é um exemplo muito claro disso. Os personagens estão sempre se dando conta dos absurdos ao redor, como máquinas milagrosas ou distorções estranhas da física, desprovidas de sentido.
****** Um dos mais espetaculares exemplos disso é o Turboencabulador — uma velha piada entre engenheiros nos países de língua inglesa, até hoje recorrente. A descrição do aparelho, publicada em uma revista acadêmica, é uma pérola da technobabble: “A máquina original tinha uma placa de base de amulita pré-abulada, encimada por um invólucro logarítmico maleável de tal forma que os dois mancais de esporão principais ficavam em linha direta com o ventilador panamétrico”. Mas esse treco faz o quê? Bom, ninguém entendeu a explicação também…
******* Não por acaso, Unobtanium vem de “Não Obter”, de Inalcançável.
******** O Gundanium é uma liga extremamente dura mas não tão pesada, quase imutável em termos de estado físico, resistente ao calor, eletricamente neutra e naturalmente invisível ao radar. Ou seja, eles são praticamente super-heróis perto dos demais robôs nessa série. Isso até explica o funcionamento do Unobtanium como conceito — “seu robô faz isso? Foi o Gundanium! Faz aquilo? Foi o Gundanium!” — e o mau uso desse recurso em jogo pode oferecer uma virtual onipotência aos jogadores: basta deixar suas capacidades vagas e desenvolvendo-se ao sabor da narrativa. Por isso recomendo mão de ferro aos mestres: definam de antemão as capacidades de seu Unobtanium e tenham pulso firme, caso contrário tudo sairá do controle! Notem que o LCL de Neon Genesis Evangelion se vale de uma estratégia criativa similar — procurem por PFCs (perfluorocarbonos) por aí e divirtam-se.
******** Ver suplemento de cenário BRIGADA LIGEIRA ESTELAR para 3D&T Alpha, pág. 57.
********* Só para ninguém esquecer: no novo BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG, os personagens jogadores serão tratados por Protagonistas.

NO TOPO: Star Trek: Lower Decks. Porque Technobabble é uma segunda natureza para Star Trek e não poderíamos nos esquecer da franquia. 😉

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