Por trás do Sabre: Ottokar

Como dito em um texto anterior, a seção “Por Trás do Sabre” é mais ancorada em esmiuçar os conceitos por trás da Constelação e oferecer rumos para o mestre em jogo. Decidi não seguir uma ordem, ou me limitar especificamente aos mundos, mas senti uma linha entre Altona e Ottokar — ambos bebem de certas influências comuns. Achei importante levantar suas diferenças em campanha: Ottokar não veio dos animes e sim das influências “europeias” do gênero.

Explicando: hussardos e lanceiros tematicamente puxam eventuais aventuras na Índia, no Oriente Médio ou na África. Mas essas aventuras trazem consigo ranços colonialistas da época e isso bate contra o conceito da Brigada Ligeira Estelar. Calcar tudo em um Império Otomano funcional ajudou: eles fazem parte da Aliança Imperial — em pé de igualdade. Por outro lado, há uma zona pós-apocalíptica em espírito e isso traz tons diferentes para este mundo.

Sendo mais claro, há espaço para o Folhetim Exótico (o jogador pode ser um hussardo imperial, se apaixonar pela princesa local e enfrentar tramoias folhetinescas ou proteger explorações arqueológicas em locais ocultos, cheios de segredos…) mas também há espaço para tramas sérias de guerra e missões brutais na Zona Devastada aonde o jogador lida com os efeitos do ataque proscrito. Um não exclui o outro e sempre há ganchos para a ficção científica.

Não importa se há um lado mais leve: Ottokar sempre teve um
histórico de guerras e dominações — e isso o marcou para sempre.

Referências Iniciais

A Zona Devastada é uma área continental, quase impossível de se fugir. Enquanto em Altona o afastamento cria bolsões sem lei, aqui a civilização foi destruída — reorganizando-se em nome da lei do mais forte. Ottokar também passou por muitas guerras, especialmente durante o Grande Vazio; é fácil achar artefatos tecnológicos ou armas terríveis do passado. Eis os ganchos para a ficção científica em sua trama, novamente com ecos dos OVAs dos anos 90.

Aqui voltamos às referências áridas de um M. D. Geist ou de um Dougram (inspirado no clássico “A Batalha de Argel” — vejam esse filme sem falta). A frente proscrita também é viável: Venus Wars pode ser uma boa referência. Gundam X contextualiza o papel de robôs gigantes em um cenário pós-apocalíptico e Gundam: Iron-Blooded Orphans serve de paradigma para o uso tecnologias de guerras antigas em campanha (prestem atenção no combate contra Hashmal).

A coisa apita um pouco diferente de Altona. Menos do que mistérios
do passado, as velhas tecnologias são sinônimos de destruição.

E os tons mais leves? Bom, temos uma armadilha: esses temas se desenvolveram em outra direção na animação japonesa — aventuras de exploração são mais fáceis de se encontrar em obras steampunk de teor juvenil como o meio obscuro Patapata Hikousen no Boukenmuito livremente inspirado em Jules Verne (os navios de areia são vitorianos demais para Brigada, mas são bacanas). Quanto ao folhetim exótico, não há jeito: precisaremos meter a mão na massa…

Explicando melhor, a temática de lanceiros e hussardos também puxou um ciclo literário de aventuras colonialistas e, ao longo do século XX, elas foram desconstruídas e reconstruídas (a fase hindu da série Sharpe, de Bernard Cornwell, é um bom exemplo dessa reconstrução). Não vi até hoje uma “versão sci-fi” disso nos animes mas, culturalmente, os japoneses são antropofágicos e o fariam sem susto. Ou seja, recomendo ir à fonte e adaptar o conceito.

Patapata Hikousen no Bouken pode dar ideias boas quanto a cidades ocultas com tecnologias
fantásticas, mesmo em um ambiente vitoriano steampunk (desculpem a qualidade da imagem).

Ottokar em Jogo

Nenhum planeta deveria ser monotemático e Ottokar tem, a seu favor, uma amplitude narrativa muito grande. Como dito, ele pode ser o palco tanto de aventuras folhetinescas e românticas quanto de tramas dramáticas e violentas. É um daqueles pousos perfeitos dentro de uma campanha de space opera, com seus artefatos tecnológicos do passado, tribos mecanizadas do deserto como os Homens Azuis (ver A Constelação do Sabre, vol. 2) — e diferentes perigos.

Ficção Científica Clássica: o Sabre já teve tecnologias superiores antes de sua idade das trevas. Ottokar pode ter guardado muitas delas. Como reagir?

Ficção Científica Militar: Além de ser uma frente contra os proscritos, dentro e fora da Zona Devastada, este mundo é propício a milícias e rebeliões.

Folhetim Exótico: intrigas e reviravoltas no espírito do capa-e-espada espacial, mas em um local singular, com mistérios próprios e senso de aventura.

Venus Wars, mesmo sem robôs gigantes, é um exemplo muito
bom
de ambientação para campanhas em frentes de guerra

Exploração: Os mistérios de Ottokar despertam interesse acadêmico e científico mas os povos envolvidos não gostam muito dessa intrusão em suas terras…

Pós-Apocalíptico: a Zona Devastada perdeu toda infra-estrutura civilizatória e agora temos os enclaves dos Senhores da Guerra impondo sua lei na área.

Space Opera: um pouco de cada um desses elementos pode ser inserido em uma campanha do gênero. Peripécia é a palavra… e a encrenca é sempre bem-vinda.

Apesar da cultura fatalista do Destino, mencionada nos livros de Brigada Ligeira Estelar, Ottokar não precisa ser um pesadelo. Ele foi feito para quebrar um pouco o lado eurocêntrico do cenário — herdada de aspectos formativos do gênero, é bom dizer — e embora muita coisa ruim aconteça nesse mundo, as pessoas nele ainda tocam suas vidas, amam, odeiam e tem algo a proteger. Algo pelo qual, talvez, valha a pena se lutar.

Até a próxima e divirtam-se!

ADENDO: a franquia Gundam costuma lembrar eventalmente de certos povos em sua franquia, por seu envolvimento em conflitos contemporâneos. Em Gundam Wing, há a Tropa Maganac — um exército privado de quarenta homens contra a Oz e a Aliança da Esfera Terrestre. Em Gundam 00, o protagonista é um jovem curdo chamado Suran Ibrahim (sob o visivelmente falso nome “japonês” de Setsuna F. Seiei). Talvez sejam referências úteis para os jogadores.

10 comentários

  1. Salve, grande Lancaster. Ótimo material, como sempre.
    Lendo o livro agora e me atualizando ao cenário, percebi algo que talvez você poderia (ou não agora, pode ser que seja razão para mais um artigo) me ajudar quanto ao uso de armas de destruição em massa (sim, as WMDs safadas que todo mundo gosta/teme).
    Armas químicas, biológicas e nucleares na Constelação do Sabre: como são, quem e como são usadas? Ou são apenas tecnologia antiga que se perdeu no Grande Vazio?
    PS: Se isso estiver em algum dos livros de BLE, pode me dar a indicação que vou lá ler!

    1. Bom, vamos lá: um dos conceitos básicos aqui é a existência de uma ética de combate — há elementos tabus, há elementos usados apenas em circunstâncias especiais e há elementos livres. Parte disso veio do fato de que deixamos nosso planeta de origem em péssimo estado e precisamos partir dele — é um trauma cultural coletivo e um planeta habitável por humanos é considerado algo precioso no universo.

      Mas, claro, tem gente focada em seus próprios interesses e que manda isso para o alto. Uma arma destrutiva e com efeitos de longo prazo como uma bomba nuclear só pode ser usado em casos extremos e com muita deliberação. Armas químicas e biológicas são proibidas, mas aquele grupo xenofóbico radical vai realmente ligar para isso ao cometer um massacre?

      Isso aumenta inclusive as atribuições da Brigada Ligeira Estelar — ir atrás daqueles com essas tecnologias na mão. Porque elas podem ser proibidas, mas não podem ser desinventadas.

  2. Biológicas e químicas são ilegais, certo. Se eu entendi direito, as nucleares existem, mas funciona como atualmente: elas basicamente são grandes dispositivos de dissuasão, um conflito mesmo utiliza tropas regulares.
    Mas quem teria acesso à essas armas (nucleares)? Governos planetários? Apenas o Imperador e a BLE? Ou qualquer duque/barão poderia, com certo gasto, construir e, pasmem, legalizar essas armas em seu território?

    Acho que a questão maior que eu estou perguntando é: o quão fácil seria para um conde maluco conseguir uma arma dessas e ameaçar usá-la, deixando isso como um plot de uma aventura (e o pessoal da Brigada entrando para salvar o mundo)?

    1. Não muito diferente de hoje em dia — o mesmo conceito se aplica: apenas governos deveriam ter acesso a essas armas, mas qualquer estudante universitário com algum conhecimento técnico, em tese, poderia construir uma bomba atômica de poucos megatons na sua garagem. Imaginem o que uma mega-organização como a Tiamat não poderia fazer?

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