A seção “Por Trás do Sabre” foi criada para dissecar os conceitos e inspirações por trás dos elementos do cenário — e nunca foi pensada para se limitar a planetas e locais. Mas, claro, os mundos são muitos e também são uma pedra fundamental para todo material posterior. Então, o próximo e óbvio passo é sem dúvida… hum, qual será o próximo passo? Os Cossacos? A Nobreza? Os Animais de companhia (no novo livro, Familiares — é, “Falantes” não pegou)?
O Grande Vazio me parece um bom ponto para começar. Ele parte de um recurso clássico da própria ficção científica (e algumas fantasias) ambientadas em um tempo futuro ao nosso: um período historicamente obscuro sobre o qual pouca coisa se diz, mas ao fim do qual o status quo do cenário emerge. É bom lembrar: essa obscuridade normalmente é deixada para o leitor ou espectador — é possível termos um passado de conhecimento comum para os personagens.
Mas, para quem assiste, sempre podemos ter surpresas. O episódio “Semente do Espaço” da série clássica de Jornada nas Estrelas é um exemplo perfeito disso: ele introduz o tirano Khan, um personagem hibernando por séculos em uma nave espacial (por favor, vamos esquecer a versão sem-vergonha de “Além da Escuridão”) e, ao reconhecê-lo, Kirk, McCoy e Spock esclarecem o espectador sobre as Guerras Eugênicas* do passado terrestre. Não há mistério aqui…
Referências Iniciais
… para eles. Por isso, inserir lacunas em um cenário é importante: o roteirista sempre pode criar um elemento novo nesse passado para atormentar os personagens e, para tanto, é preciso deixar gavetas vazias para novas informações. Esse recurso também pode ser usado para obras de outros gêneros — por exemplo, inserir um contexto ficcional no passado… e dar um motivo para a inexistência de seus vestígios hoje em dia. Era Hiboriana de Conan, alguém?
Nos animes do gênero, isso é comum. Gundam, por muito tempo, estabeleceu datas relativamente próximas de futuro para o início de sua linha de datação, a Universal Century (UC). Porém, quando essas datas se aproximaram (a Federação Terrestre originalmente foi fundada em 1999!), a Sunrise apelou para retcons com novas datas — até um momento, em meados dos anos 90, no qual eles jogaram a toalha e riscaram toda menção às datas anteriores a UC 0001**.
Por outro lado é conveniente demais dizer “guerras aconteceram e o mundo adquiriu sua compleição atual” para abandonar o assunto. Um elemento interessante na continuação estadunidense de Macross II***, em quadrinhos, foi o de remexer esses assuntos deixados para trás e mostrar consequências — por exemplo, a indústria de armas não ter interesse em um mundo unificado e agir, lá nas sombras, para trazer de volta os antigos países… e seus confrontos.
Macross já admitiu sua anacronicidade e se tornou uma linha de tempo alternativa — ao datar os elementos da sua trama, nem pôde fugir. Por isso, quanto mais vagos e distantes tais eventos, melhor… mas eles sempre podem ser explorados. Com todos os seus problemas (e sabemos quais são), o background apocalíptico de Darling of the Franxx não é uma mera desculpa para deixar o mundo como o conhecemos na série: ele é fundamental para a trama principal!
O Grande Vazio em Jogo
As referências não foram passadas por alto à toa: este é um conceito muito convencional, mas eficiente e com várias utilizações práticas. No caso do Grande Vazio, ele foi pensado para ser um passado obscuro até para os personagens e, diferentemente de Jornada nas Estrelas, há um sem-número de buracos históricos. Aliás, no novo BRIGADA LIGEIRA ESTELAR RPG, o espaço de tempo se revelará maior do que o imaginado. Há razões para isso — fiquem calmos.
Dito isso, é hora de nos debruçarmos atentamente sobre nosso cenário e examinarmos os potenciais ocultos de uso do Grande Vazio em suas mesas de jogo.
Ameaças do passado: o mais recorrente — vimos isso inclusive em Belonave Supernova 1 e 2 — e nos itens utilizados pelos Senhores da Guerra de Ottokar.
Adormecido: dormir por séculos, graças a alguma tecnologia, permite criar protagonistas sem cargas cronológicas**** — e o Grande Vazio é uma desculpa.
Locais: eventos tem consequências. Um lugar estranho pode ser encontrado em algum canto planetário qualquer graças a algum evento do passado distante.
Segredos desvendados: o passado pode trazer revelações e elas alterarem os rumos de locais… ou de mundos. E há quem possa querer mantê-los enterrados.
Tesouros e Tecnologias: isso é um grande gancho para aventuras, no espaço ou em outros ambientes planetários! Mas, é claro, você vai ter concorrência…
Tudo isso oferece aos mestres uma grande possibilidade para customizar o cenário. Por exemplo: Winch tem algumas menções a um passado distante e às Guerras Firborgs*****. Os personagens podem entrar em um sítio arqueológico estranhamente sob quarentena militar e descobrir a presença de… digamos, robôs de estatura humanóide vigiando, fazendo sua própria manutenção e impedindo qualquer um de entrar. Eles também não saem de lá — só protegem o local.
Mas qual o motivo para isso? Ora, o mestre decide. O importante aqui é o fato de termos uma desculpa cronológica no cenário para esses elementos extras. “Foi uma catástrofe desconhecida dos tempos do Grande Vazio, mas não conseguimos entrar para descobrir os fatos.” Acabaram-se as explicações por enquanto: vocês tem tudo para explorar o local e buscar aquilo pelo qual estão procurando — e lembrem-se, sempre: o cânone é seu para alterar à vontade.
Da mesma forma, você pode trazer todo tipo de novo conceito ou item para seu jogo usando esta como uma explicação conveniente, sem grandes complicações. Esse elemento tem inclusive uma extensão física no cenário para esse fim — o Quadrângulo Negro. Ele é uma área inexplorada da Constelação, dividindo o Fio do Sabre da Ponta****** e funciona como uma pia da cozinha, de onde você pode puxar facilmente qualquer conceito “dos tempos do Grande Vazio”.
Algumas Palavras Extras
É claro, alguns lugares com sítios arqueológicos parecem mais convenientes para isso: Altona, por sua tendência ao estranho, bizarro e inesperado, e Ottokar por seu contínuo histórico de guerras planetárias e tecnologias de combate. No entanto, é importante lembrar: todos os mundos da Constelação do Sabre passaram pelo Grande Vazio e cada um lidou com suas consequências. Ou seja, cada planeta, habitado ou não, é uma fonte de ganchos em potencial.
E o Grande Vazio não é nada além de um facilitador para o mestre: uma criatura viva, devastadora e trancada em um contêiner por séculos? “Uma biotecnologia do grande vazio perigosa e incontrolável demais, enterrada e esquecida”. Uma deusa adorada por seu povo em uma lua terraformada qualquer? “Uma inteligência artificial datada do grande vazio, convicta demais de seu papel”. Tudo é possível. Basta uma desculpa.
Até a próxima e divirtam-se, sempre!
* Em Jornada nas Estrelas, a engenharia genética gerou super-humanos com maior força física e capacidade cerebral. Não foi uma boa idéia: eles tomaram o planeta, repartindo-o entre si. Khan Noonien Singh governou um quarto do planeta mas queria o resto do mundo. Isso levou às Guerras Eugênicas, quando esses tiranos mergulharam em confronto uns contra os outros e levaram ao extermínio de bilhões. Quando a humanidade reconquistou o planeta no distante ano de… 1996, executou a maior parte destes humanos engendrados geneticamente — mas oitenta e quatro deles sobreviveram e foram colocados sob criogenia em uma nave espacial, sendo mandados para longe, bem longe, muito longe… para sempre. Isso é, até o momento no qual Kirk e companhia ilimitada os encontraram. E claro, Khan estava entre eles.
** Gundam Iron Blooded Orphans, é interessante lembrar, também tem sua cronologia baseada em uma catástrofe do passado, a Guerra da Calamidade (ao ponto de nomear sua contagem de tempo, o PD — Post Disaster) e os Gundams são artefatos de tempos antigos, desencavados de sítios arqueológicos. Não apenas eles: os Hashmal — robôs de combate comandados por inteligências artificiais e voltados ao extermínio de populações civis inteiras — também se enquadram nisso e agem como uma praga sem controle. Nesse sentido, eles são uma excelente referência para o Grande Vazio.
*** Macross II: Micron Conspiracy, publicado pela Viz Comics em 1994, com roteiro de James D. Hudnall e arte de Schulhoff Tan. Não é uma maravilha, mas tem uma trama competente (não podemos dizer o mesmo de Macross II, o filho renegado da franquia) e serve de um registro de outros tempos da relação entre o Japão e suas franquias no ocidente, quando uma série abandonada pôde ser licenciada e ganhar materiais próprios — Macross II ganhou RPG, o Macross original (talvez por conta do contrato envolvendo Robotech), não.
**** Ou seja, conveniente para quem chegou de para-quedas no cenário e não conhece nada sobre ele, precisando de um personagem mais familiar para se meter no jogo.
***** As Guerras Firborgs foram mencionadas por alto apenas em edições antigas da Voz do Sabre. Pertencem ao passado distante e, graças ao Grande Vazio, agora meio lendário do planeta Winch. Eles são uma divergência — humanos geneticamente modificados, assim como os Evos — e entraram em várias guerras contra a humanidade deste mundo ao longo de dois ou três séculos, partindo do sistema para nunca mais voltar. Não se sabe do seu destino, muito graças ao isolamento da constelação por milênios. Com as novas viagens espaciais, entretanto… oops!
****** Para esclarecer quem estiver chegando agora e não conhece tão bem o cenário: a Constelação do Sabre — ambientação central de Brigada Ligeira Estelar — forma um império dividido em três áreas administrativas: o Cabo do Sabre, o Fio do Sabre e a Ponta do Sabre.
NO TOPO: imagem de Break Blade, um dos melhores exemplares desse tropo do ponto de vista de um protagonista: em um cenário aonde todos são capazes de usar, hum, magia, um personagem incapaz de lidar com ela desde o nascimento (e portanto, tratado como um deficiente físico), encontra um “antigo artefato” de um tempo distante (e não é difícil inferir de onde ele veio), aonde magia não existia e tudo era tecnológico. E com isso, ele pode ser um herói.
DISCLAIMER: Jornada nas Estrelas (Star Trek) é propriedade da Paramount Pictures Corporation; Break Blade é propriedade de Yunosuke Yoshinaga via Flex Comix, Inc., Production I.G, Inc. e Xebec., Inc.; Darling of the Franxx é propriedade de A-1 Pictures Inc., Trigger Inc. e CloverWorks Inc.; Akira é propriedade de Katsuhiro Otomo e TMS Entertainment, Ltd.; Outside the Wire é propriedade dos estúdios Automatik Entertainment, 42 Films e Inspire Entertainment; Tengen Toppa Gurren Lagann é propriedade de GAINAX Co., Ltd.. Todos os direitos reservados a seus respectivos proprietários. Imagens aqui usadas para fins jornalísticos e de divulgação.
Não é à toa que tantos cenários de RPG têm um apocalipse mal-explicado no passado. O negócio é útil. Eu tenho um carinho especial pelos “super-robôs” do Grande Vazio, os que eram grandes como naves. Só de imaginar o que poderia exigir uma arma assim pra combater (e como acabaram enterrados por aí) me dá várias ideias de aventura.