Por Trás do Sabre: Uziel

O planeta Uziel é uma mostra de como nossas criações podem ir além de seus conceitos e ganhar identidade própria. Ele nasceu de um conceito simples em qualquer space opera digna do nome: um antro criminoso em escala planetária. Ele até carregava um clichê de faroeste — a “cidade na fronteira com o México” (lembrem-se do quadrângulo negro separando o fio da ponta do Sabre). Pensem em Star Wars: lembram de Mos Eisley e do palácio de Jabba? Contudo…

…nem eu esperava pelos desenvolvimentos de Belonave Supernova. É claro, o mundo precisaria ter instituições lenientes com o crime: seu limite com a lei precisava ser difuso. Mas, através dos jogadores e de seus patronos na campanha, tudo ganhou — para minha surpresa — uma nova dimensão: há ecos de nossa República Velha (no ir e vir entre locais agrestes e nas negociatas por trás da cadeia de conexões necessárias para a formação de um exér… opa*).

Podemos pensar em ecos de Canudos, até (spoilers nas notas, pessoal**) e talvez adicionar outro eco aqui: o começo da Primeira Grande Guerra, com o esfacelamento de uma visão de mundo***. Por fim, há um futuro sombrio em potencial: a nova borda espiritual da esfera de conflito dos proscritos, mesmo estes ainda não tendo pisado com tudo nesse mundo. Três modos de se encarar Uziel — cuja disputa por prevalência pode trazer resultados interessantes.

Combat Mecha Xabungle: achado não é roubado, se você escapar da lei por três dias.

Referências Iniciais

É incrível como, ao refletir sobre o cenário, mais me dou conta de Xabungle como influência. Independentemente de seus aspectos de faroeste, o interessante neste caso específico é o senso de delinquência presente em todas as esferas****. Nenhum personagem é santo: o protagonista é bem-intencionado, mas só parece ser ingênuo ao ser comparado com os demais e, como todo mundo ali, torce as regras a seu favor — até porque elas são muito frouxas*****.

Outro anime interessante aqui é Burst Angel (Bakuretsu Tenshi), dirigido pelo mesmo Koichi Ohata de… Genocyber e M.D. Geist II. Ele é um legado dos loucos anos 90 na animação japonesa e, quando não pode inserir sangue e tripas em suas séries, insere fanservice. Mas essa série vale por mostrar um mundo em delinquência (no caso, relacionadas à liberação total das armas no Japão). Como a polícia não dá conta, caçadores de recompensa são necessários.

Burst Angel: tem robô gigante aqui, mas seu público provavelmente nem está ligando… 😉

Ah, sim… Gundam: Iron-Blooded Orphans. Se olharmos bem, disfarçada sob os elementos da série, nós temos uma história de ascensão e queda de gângsters da Yakuza — prestem atenção na cerimônia de inclusão da Tekkadan na Teiwaz, e como o andamento dos eventos faz tudo parecer mais com um filme de máfia. Há duas escalas, a das autoridades e a dos buchas de canhão… e em Uziel, esse espírito pode ser aplicado tanto à nobreza quanto ao nível mais baixo!

E podemos esquecer de Cowboy Bebop? Apesar da associação com o faroeste, seu universo tem um clima mais gângster se olharmos bem, refletindo um contexto aonde a lei é igualmente frouxa. Diacho, se caçadores de recompensa chegam ao ponto de ter um programa de televisão indicando o valor pelas cabeças de seus alvos, é por haver uma demanda incrível pelo serviço! Para os mestres de jogo, reparem no teor sci-fi das missões de Spike, Faye e companhia.

A Teiwaz de Gundam: Iron Blooded Orphans: parte Yakuza, parte Máfia siciliana.

Uziel em Jogo

Este é um planeta culturalmente clientelista, com claro ceticismo dos seus cidadãos pelas leis. De novo, três faces em potencial: o antro espacial aonde o crime se instala nas instituições, a nação planetária aonde o dinheiro é a graxa lubrificante do sistema, o mundo à espera de invasores interestelares. Uziel precisa de heróis — mas e quando sua história e cultura negam a existência disso ao próprio povo? Aqui, há cinismo e ambiguidade em tudo.

Capa-e-Espada Espacial: com alguma desconstrução é possível. Adicione pitadas de picaresco e gotas de crítica social para diluir o lado heroico******.

Cyberpunk e Pós-Cyber: pilotar robôs gigantes pode ser algo distante para muita gente. Vocês podem ser parte do caos ou lutar contra ele dia após dia.

Faroeste/Gângster Espacial: se pensarmos bem, o gangsterismo é a evolução do faroeste a um novo contexto histórico. Jogue isso no espaço — e tudo bem.

Se lei é um contexto muito relativo no universo de Cowboy Bebop, vão regulamentar logo a televisão?

Ficção Científica Militar: com tal desleixo pelas leis, grupos terroristas podem se beneficiar e lembrem-se, os proscritos estão mais e mais próximos…

Folhetim Espacial: trate a nobreza como se fossem famílias de mafiosos. A missão da Brigada, aqui, pode ser a prevenção de guerras de gabinete*******.

Space Opera: não é diferente do capa-e-espada/faroeste espacial. Só mantenha o senso de exagero e super-ciência do subgênero. E certo cinismo no caso.

Na verdade, cavando melhor, é possível até abrir mais o leque. O Meridiano dos Mortos (novamente, quem leu Belonave Supernova se lembra) pode abrir um nicho de tom mais próximo ao pós-apocalíptico, por exemplo, embora ele esteja em reconstrução. Tudo depende, como sempre, do mestre e dos jogadores. No final, nossa saga de 26 episódios ampliou muito a visão sobre este planeta e sua posição na Aliança Imperial do Sabre. Levamos muito isso em conta.

Sem spoilers, pessoal

Um dos pontos recomendados no texto relacionado à Uziel em A Constelação do Sabre, Vol. 2, é o de contrapor o espírito heroico dos personagens a um ambiente aonde tudo carrega a sombra da ambiguidade moral. Ainda acho essa uma possibilidade cheia de potencial, especialmente se os personagens criarem laços neste planeta. Só lembrem-se: nem todos aqui são criminosos ou delinquentes. Talvez, ao sair de Uziel, eles se adequem a uma ordem respeitável.

Na verdade, a maior parte das pessoas não é assim… conscientemente: elas deixam escapar o efeito dessa cultura até mesmo quando uma lei não “pega” e ninguém a faz valer (como se fizessem um piquenique em um gramado proibido de ser pisado). Pelo menos, os pilotos da Brigada tem o senso da transgressão ao passar por cima de uma regra. Aqui é algo automático: “se ninguém liga, sou eu quem vou ligar?”

Parece inofensivo, mas é assustador.

Até a próxima.

Bang.

* Esse é um spoiler de Belonave Supernova. Como dito no texto, vamos dar os spoilers apenas aqui nas notas de pé de página.
** Não vejo essa como uma analogia cem por cento, mas foi uma revolta dentro de um estrato social baixo e salvo se os jogadores encontrarem outra solução… de quebra, a opinião pública fará dos personagens heróis por conta disso.
*** Se pensarmos bem, tanto o atentado contra (não vou entregar essa, pessoal) e o atentado ao arquiduque Ferdinando da Áustria em 1914 escancararam e desmontaram a fragilidade dos arranjos que mantinham a paz naquele mundo — e depois disso as coisas foram todas se esfacelando. Se alguém achava estar seguro em Uziel, definitivamente depois disso não achava mais, pode ter certeza.
**** Uma das minhas cenas favoritas em Xabungle costuma ser pouco notada, mas explica bem como as coisas funcionam na série: a filha do coronelzão (pensem faroeste, gente, pensem faroeste) convence ao pai avarento a abrir a mão e oferecer 3000 créditos em recompensa para a captura do robô roubado. O trabalho de avisar a todo mundo cabe ao capataz do coronelzão. Então ele oferece para todo mundo… 2000 créditos. Nem é preciso explicar aonde foram parar esses 1000 e ninguém vai achar mixaria porque todos são uns ferrados mesmo. Isso é Uziel para caramba!
***** É um dos conceitos fundamentais da série: se você comete um crime, qualquer crime, e não é pego dentro do espaço de três dias, no quarto você está livre e nem vai ser indiciado.
****** Você pode escolher: se quiser uma desconstrução picaresca das galantes aventuras de espadachins oitocentistas, procure Royal Flush, o segundo volume da série The Flashman Papers, de George MacDonald Fraser. Aquilo transforma o clássico O Prisioneiro de Zenda em seu alvo de pedradas e é divertidíssimo, sem os elementos desconfortáveis do primeiro livro. Se quiser esse espírito canalha aplicado para o capa-e-espada espacial, além do quadrinho Nikolai Dante (recomendado por nós no artigo dedicado a Arkady), também recomendo as space operas setentistas de Howard Chaykin (como Cody Starbuck). Este hoje em dia está fora de catálogo e é raro de se encontrar, então não há vergonha nenhuma em dizer — procurem na rede, pessoal. Avisando que todos esses exemplos, em maior ou menor grau, são para adultos.
******* Guerras de Gabinete (não confundir com Gabinetes de Guerra) envolvem pequenos exércitos, corpos de oficiais da nobreza, mercenários e tem objetivos de guerra limitados. Freqüentemente envolvem mudanças de coalizões entre os lados oponentes. Também conhecidos como “guerras entre príncipes”.

DISCLAIMER: Combat Mecha Xabungle, Gundam: Iron Blooded-Orphans e Cowboy Bebop são propriedade da Sunrise, Inc.; Burst Angel é propriedade da Gonzo, K. K. Imagens apresentadas por motivos divulgacionais. Todos os direitos reservados a seus respectivos proprietários.

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