O Fator Heróico

Sim, mesmo tendo seus tons de cinza bem claros, Brigada Ligeira Estelar é um cenário heróico. É muito difícil associar esse termo à ficção científica hoje em dia, mesmo à space opera (dêem uma olhada no artigo sobre Astropunk) e tenho algumas palavras a dizer sobre isso. Mas antes, um aviso importante: os tons narrativos (árido, aventuresco, heróico, folhetinesco e épico) ainda valem aqui e, novamente, quando você compra o livro, o cenário é seu.

Em suma, se você quiser ignorar estas palavras, sinta-se em frente, desconstrua tudo e ponha o filtro cinzento do Zack Snyder. É o direito inalienável de todo e qualquer grupo de jogo. Um autor de RPG jamais deveria ser um grande irmão olhando sobre os ombros do mestre e metendo o dedo na sua mesa de jogo. Eu apoio, de verdade. PORÉM, eu ainda tenho decisões criativas a encampar. E neste mês de aniversário, é um bom momento para se lembrar delas.

E eu devo começar pelas referências iniciais.

Em certo grau, embora eu sempre tenha adorado robôs gigantes, obras como Patrulha Estelar e Capitão Harlock (com as quais eu tive contato na idade certa) foram pedras fundamentais importantes para o cenário. É generacional. Foram produtos dos anos 70 que vazaram para o ocidente nas duas décadas seguintes e o componente heróico estava lá*, envolvendo sacrifícios pessoais e missões em nome da humanidade.

A abertura da versão que chegou ao Brasil.

O Brasil teve contato com a transição entre o super-robô e o real robot na televisão a seguir, através de obras como Saber Rider (a versão modificada de Sei Juushi Bismark para o ocidente) e Esquadrão do Espaço (Akū Daisakusen Srungle — esse não assisti tanto quanto gostaria porque, à época, eu estudava de manhã). Foi um período menos cínico do gênero e, como já falei antes, teria sido saudável para o real robot incorporar alguns de seus valores.

Mas eu, fisgado para a ficção científica por Guerra nas Estrelas (influente para todos esses animes**) e pelas jornadas do Cruzador Espacial Argo***, fui buscando mais do gênero quando as opções foram escasseando. Fui salvo pelas produções ocidentais com animação japonesa****, como Galaxy Rangers (querido por mim até hoje), Jayce, Spiral Zone e Starcom (de vida curta, infelizmente). Não eram a mesma coisa — mas alimentavam meu desejo pelo gênero.

Sim, não vou me cansar de postar isso aqui.

Aí veio Robotech na Globo. Pronto: um real robot estava em nossa televisão. Nos faltava ainda contexto para entender a posição de Macross no gênero mas ele já surgiu no Japão como um contraponto menos cinzento (e comercialmente mais palatável) aos conceitos de Gundam*****. Eu ainda não tinha videocassete em casa mas a construção inicial do que passei a esperar do gênero, e da própria animação japonesa em si, já estava montando-se em minha cabeça.

Passaram-se alguns anos e tomei contato com revistarias de quadrinhos importados, mostras de vídeos de animes e a internet. E entenderia o quanto nosso recorte não era tão representativo: Patrulha Estelar e Capitão Harlock perderiam espaço, nos anos 80, para o desejo por uma ficção científica mais hard. Talvez a era de transição entre o super robot e o real robot tenha sido o último movimento de massa aonde a balança sci-fi pendeu para o juvenil.

Cá entre nós: o tema estadunidense era irritante, não?

Voltando para o Brigada Ligeira Estelar: quem conheceu o gênero mecha de quinze anos para cá teve, com certeza, uma experiência completamente diferente da minha… e uma das metas do meu cenário foi a de representá-lo como um todo. Por isso os tons narrativos são importantes: para permitir aos mestres e jogadores encontrar sua própria experiência no gênero dentro do cenário. Uma space opera clássica? Cyberpunk? Pulp? Não importa, você o encontrará.

Mesmo assim, o coração do cenário é… heróico. Algo meio “como assim?” quando a lembrança do gênero para muitos quando seu primeiro contato com o gênero pode ter sido com Evangelion, perene desde seu lançamento, ou mesmo com um Gundam mais recente (Gundam 00 ou Iron-Blooded Orphans, por exemplo). A própria Brigada Ligeira Estelar em si foi pensada não como um instrumento de opressão, como as guardas por nós conhecidas — mas como elas deveriam ser.

Pouca gente lembra, mas passou por aqui.

Culturalmente é difícil pensar isso, eu sei. Nosso histórico nesse sentido é horripilante e as exceções pagaram o preço justamente por mostrar dignidade. Por isso a abordagem “mosqueteira” dos Pilotos Hussardos Imperiais é importante (o referencial histórico ajuda): serve para tirar do jogador a impressão de estar lá para cumprir ordens. Ninguém joga para cumprir ordens e não sou burro de fazer isso: você executa missões. O resto é por sua conta.

E no final, identidade seja o ponto definitivo dessa escolha. Você pode, sim, jogar com personagens ambíguos ou em um contexto sombrio. Mas Brigada Ligeira Estelar não é um apanhado de várias vertentes de anime em um cenário só. Há um mínimo denominador comum em tudo e ele foi construído modularmente ao seu redor por anos, sempre com o princípio de garantir ao jogador a oportunidade de trazer o clima de seu anime favorito na mesa. E, mesmo assim…

Robotech foi importante: finalmente o real robot chegou a nós.

… ele também precisa ser atraente e ter personalidade para quem chega do nada sem a menor ideia dos referenciais envolvidos no cenário. Não ser um arremedo de Gundam e Patrulha Estelar (embora eu sempre diga: tudo na Constelação do Sabre veio de algum lugar, mesmo com uma pequena torção aqui e ali para lhe dar personalidade própria). E dá para fazer isso, sem sensação de repetição. Compare a miríade de cenários de fantasia do velho AD&D entre si!

O fator heróico é parte importante da natureza de Brigada Ligeira Estelar. Para você, mestre ou jogador, ter contato com a obra e dizer: essa não é a série animada X com números de série riscados, embora você possa trazer seu personagem ou situação favorita para a mesa. A Constelação do Sabre é um cenário no qual os personagens tem algo muito importante para lutar. Isso, pelo menos assim espero, não é pouca coisa… e nem deveria ser.

Até a próxima.

* Por um lado, a série Patrulha Estelar, com sua tripulação de jovens abnegados para salvar a humanidade, sublimou, no Japão, orgulhos nacionalistas reprimidos desde o final da Segunda Grande Guerra — isso é mais explicitado nos longa-metragens-resumo para cinema da época. Por outro lado, com sua dignidade estóica, Capitão Harlock alegorizava uma busca por orgulho e dignidade sob a ocupação estadunidense (especialmente no longa Waga Seishun no Arcadia — lançada em VHS e exibida na saudosa Rede Manchete como Capitão Harlock e a Nave Arcádia — e na sua série derivada, Captain Harlock SSX). São obras cheias de heroísmo romântico e uma abordagem mais fantasiosa da ficção científica: podem reparar como o remake de Patrulha Estelar tem uma aura menos mitológica do que o original.
** Dá para se fazer um estudo sobre a influência pesada de Guerra nas Estrelas (Star Wars) em toda uma geração de animadores no Japão (na verdade, no planeta inteiro). Para eu não me deter demais sobre isso, fico só na influência estética e em manifestações pontuais aqui e ali (como os duelos com sabres de luz em Space Runaway Ideon, por exemplo).
*** O nome com o qual a belonave Yamato, de Patrulha Estelar, foi batizado no ocidente (Argus nos Estados Unidos, Argo por aqui. E foi uma grande sacada, por criar um link mitológico nos espectadores). Não vou mais chamar aquela nave de Yamato a essa altura da vida.
**** Precisamos dar um crédito ao produtor francês Jean Chalopin. Trabalhando por uma década inteira na indústria japonesa de animação, ele decidiu implantar esse molde no ocidente com produções animadas no Japão, mas modeladas ao ocidente com roteiros locais (a partir de Ulysses 31, jamais exibido aqui), ele praticamente definiu o que seria a animação comercial ocidental da década de oitenta e sua relação com a indústria de brinquedos.
***** Mobile Suit Gundam surgiu como uma desconstrução e era uma obra menos acessível para o espectador juvenil de robôs gigantes de seu tempo, tanto que fracassou em sua primeira exibição, alcançou status cult para um público mais velho, explodiria no cinema (aonde encontraria seu público) e viria a definir o surgimento de uma cultura otaku no Japão — recomendo ESTA leitura. Fang of the Sun: Dougram viria a seguir, seguindo o trend estabelecido. Dentro desse contexto, Superdimensional Fortress Macross surgiu como uma resposta mais pop e acessível aos seus antecessores, com música, romance e uma condução mais novelesca — sem perder a força de seus conceitos de ficção científica. Isso deu certo e tem reflexos até hoje. Se Gundam criou o alfabeto do gênero, Macross estabeleceu sua gramática.

NO TOPO: Patrulha Estelar, versão remake.
DISCLAIMER: Uchuu Senkan Yamato 2199 é propriedade de Yoshinobu Nishizaki/2014 Space Battleship Yamato 2199 Production Committee e 2012 Space Battleship Yamato 2199 Production Committee; Robotech e marcas associadas pertencem à Harmony Gold USA, Inc; Akū Daisakusen Srungle é propriedade de Enoki Films Co., Ltd.; Sei Juushi Bismark (versão original de Saber Rider and the Star Sheriffs) pertence à Pierrot Co., Ltd.. Todos citados para fins divulgacionais e jornalísticos.

Um comentário

  1. O Fator Heróico foi essencial para que eu (que nunca fui um conhecido do gênero, no máximo tangenciei os Megazords de Power Rangers e Code Geass) pudesse me apaixonar pelo cenário em si, para que eu senti-se no coração que ele tinha algo a dizer.
    A Constelação de Sabre não é local das lamúrias. A Crise está aí e os Inimigos estão no poder, a questão é o que você fará a respeito disto.
    Veste teu traje, ergue teu sabre e defende a honra.

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