Paradigmas Narrativos em Campanha

Eu costumo usar paradigmas narrativos de roteiro para minhas campanhas, notadamente o Paradigma de Syd Field. Ele é linear e movido a conflito, algo bem conveniente na mesa de jogo: temos três atos, subdivididos em pontos dramáticos responsáveis por avançar a história. Tomei a liberdade de incluir uma divisão em 26 capítulos — eles se tornaram meu padrão pessoal — mas, com algumas liberdades minhas nessa estrutura. Antes de prosseguir, um alerta:

Essa é uma versão simplificada do processo. Em Belonave Supernova eu compliquei mais: em primeiro lugar, tracei as linhas gerais da história e a dividi em três atos, estabelecendo eventos chaves da estrutura. Em seguida dividi cada ato em três atos, mantendo esses elementos chaves e estabelecendo novos no processo. Por fim, dividi cada ato em três atos e enfim, chegamos aos capítulos, estruturados internamente em três atos. Deu trabalho? Ah, deu!

Mas, para a sessão nossa de todo final de semana, nem é preciso tanta dor de cabeça. Em geral, antes de uma sessão, improviso dessa forma: rabisco os três atos, marco pinças, plot points e o ponto de virada (fundamental). É algo rápido, montado na base da caneta mesmo e eu faço em cinco, dez minutos. Posso me dar a esse luxo por saber aonde cada capítulo se encaixa em uma trama maior e se há algo importante a acontecer nele. Isso, estruturo aqui.

Na verdade a estrutura em si é bem mais simples — mas, para definir os
eventos principais de uma campanha em uma tacada só, montei essa tabela aqui.

E no entanto, em minha última campanha com amigos, o deixei de lado em prol da estrutura narrativa oriental clássica, o Kishōtenketsu (Chi-chen-juan-he na China, Ki-sun-cho-kyul na Coreia). A diferença para o Paradigma de Syd Field é simples — ele é movido por exposição, aprofundamento e contraste, não por conflito. Isso me leva a… Shoujo Kakumei Utena: não gosto dessa série, mas é um dos exemplos mais cristalinos de como essa estrutura funciona.

Utena é divido em quatro arcos bem distintos, distribuídos em 39 episódios, e cada um deles se enquadra nessa dinâmica do Kishōtenketsu: a primeira parte, a Saga do Conselho Estudantil (Seitokai Hen), cobre os treze primeiros episódios — introduzindo os personagens e seu status (Ki). O segundo, a Saga da Rosa Negra, aprofunda esse elenco e define melhor o papel de cada um no cenário, cobrindo mais dez episódios (Shō). É hora de bagunçar o coreto.

Utena não é uma série de robôs gigantes ou ficção científica, então é off-topic
por aqui e não vou pegar no pé dela. Mas, estruturalmente, é didática quanto à narrativa.

Parte do papel do Shō é introduzir paulatinamente os elementos geradores do grande barata-voa provocado pela vinda do Ten. Nele surge o personagem-título do terceiro arco, a Saga de Akio Ohtori (episódios 25 a 33). O sujeito revira a trama e desagrega o status quo pregresso. O arco final — a Saga do Apocalipse, episódios 34 a 39 — explica tudo e traz sentido a esses eventos do terceiro ato em relação aos primeiros (Ketsu).

Isso é o Kishōtenketsu.

Eu tenho mestrado recentemente uma campanha de Macross (a partir desta adaptação para 3D&T) usando essa estrutura com bons resultados. No Capítulo Um, precisei reunir meus cinco pilotos para a N.U.N.S. mas, tirante um, o resto tinha outras procedências. Novos pilotos comandariam cinco protótipos de Valkyrie com tecnologia especial e um deles estava na nave Megaroad Sigma  — a campanha inclusive se chama Macross Sigma — à espera dos outros quatro.

Infelizmente, a nave foi abatida pelos alienígenas da vez, quatro operativos de apoio foram empurrados para o papel de piloto e o único sobrevivente dos oficiais restantes foi graduado, no susto, a líder de esquadrão. A situação de todos ficou incerta por mais dois episódios, mas ao final do terceiro eles todos foram promovidos e a etapa de introdução foi completa. Nesse ínterim todo o elenco coadjuvante foi apresentado. Ki completo, hora do Shō.

A partir desse ponto a narrativa vaga um pouco, explorando os personagens (não seria Macross se não o fizesse): um piloto mulherengo e a candidata a cantora tem atração mútua mas a coisa não anda. O irmão dela, outro piloto, é o melhor atirador mas se sente um peixe fora d’água. Um futuro doutor traz uma alien à bordo. A comandante da base está prestes a surtar graças às tramóias das empresas de serviços militares (como a SMS e a Chaos). Ah, sim…

Ki: os pilotos são reunidos. Shō: acompanhamos suas missões e entendemos
melhor o cenário aonde todos trafegam. Ten: jogamos tudo para o ar. e o Ketsu…

…o objetivo delas é a privatização das forças armadas com ajuda da imprensa — sempre disposta a difamá-las ou exagerar suas falhas, vendendo esse peixe para o povo. Uma telenovela, Lovers Again, é filmada na Megaroad e contribui com a propaganda negativa. Os invasores adoram uma “música viva” que dominou seu povo no passado distante e é reproduzida, como um vírus. Tudo isso foi exposto pacientemente dos episódios 4 a 11, culminando em uma virada.

No episódio 11, os personagens lidavam com consequências de erros anteriores: os alienígenas, digitalizados (ideia inspirada no Demônio da Mão de Vidro de Harlan Ellison. Não reclamem: Macross sempre foi mais… imaginativo), agora estão circulando pela rede e foram difundidos pela Sigma para o resto da humanidade. Agora, suas armadas se materializaram fisicamente em todos os cantos do universo aonde a N.U.N.S. está — e a culpa é dos protagonistas.

Lovers Again é uma brincadeira: Macross II se passa na continuidade do longa-
metragem DYRL e este foi transformado em uma obra de ficção dentro do cenário. Logo…

Não vou dar mais detalhes porque a campanha estava neste ponto quando escrevi esse texto e meus jogadores podem ler tudo, mas chegamos ao Ten e… ferrou tudo, pessoal! Obviamente duas tramas vão marcar presença, sem spoiler nenhum — a guerra dos invasores Marduk (não exatamente os mesmos do descanonizado Macross II) e a pressão pelo fim da N.U.N.S. (ela vem sendo bem destratada na franquia, desde Macross Frontier). E tudo segue bem, sem problemas.

É claro, a coisa é bem mais frouxa e os rumos ditados pelos atos jogadores ainda são importantes: eles levarão a história de etapa a etapa. No processo, linhas de roteiro e alguns coadjuvantes foram descartados — os jogadores não se interessaram em explorar esses caminhos e está tudo bem. Como falei lá em cima, costumo estruturar brevemente cada sessão sem muito detalhamento, apenas definindo os atos e marcando eventos relevantes. É coisa rápida.

Sim, o paradigma de Syd Field mesmo: Estabelecimento, Confrontação e Resolução.
Mesmo usando o Kishōtenketsu para a trama geral, este aqui é mais prático para a sessão em si.

Estou só compartilhando experiências próprias com esse tipo de material em jogo e colocando-a de modo prático para mestres e jogadores. Para quem estiver interessado em uma abordagem mais ligada à escrita, roteiro e similares, há bons artigos na internet sobre o assunto — este aqui é uma boa introdução. No entanto, em nome da proximidade com as inspirações animadas do cenário, planejar sua campanha através do Kishōtenketsu pode ser uma ideia boa.

Se eu aponto uma vantagem em especial deste em relação ao Paradigma de Syd Field ao usá-lo como estrutura básica de uma campanha em 26 episódios, é justamente a de oferecer maior liberdade aos jogadores. Eles não tem linhas a seguir realmente. No entanto, os eventos fora de seu controle cedo ou tarde irão chegar e atingi-los como um atropelamento de caminhão. Caberá a eles lidar com isso.

E pensando bem, não é esse o espírito do RPG?

Até a próxima.

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